Leia entrevista completa com Brian Selznick, que lança o livro infantil ‘Os Marvels’ no Brasil
O escritor norte-americano Brian Selznick, 50, ficou conhecido mundialmente após “A Invenção de Hugo Cabret” ganhar uma adaptação para o cinema feita por Martin Scorsese em 2011 –a ilustração acima é do livro. Agora o autor acaba de lançar no Brasil seu novo romance: “Os Marvels”.
Construída em duas partes, a obra conecta uma tradicional família de atores de Londres a um garoto que fugiu de um colégio interno e decide procurar um tio desconhecido. Saiba mais sobre o livro aqui.
Por telefone, Selznick conversou com a Folha com exclusividade. Leia a entrevista completa abaixo.
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FOLHA – O que mudou na sua vida depois do sucesso de ‘A Invenção de Hugo Cabret’?
Brian Selznick – “Hugo” transformou minha vida em certo sentido. Tive a oportunidade de conhecer um monte de pessoas e fazer novos amigos, estar em um set de filmagem ao lado de Martin Scorsese, participar dos lançamentos do filme.
Mas o processo de sentar e começar a trabalhar em um novo livro não mudou em nada. O esforço e a frustração ainda são os mesmos também. Claro que eu sabia que o sucesso do filme renderia mais atenção às minhas próximas obras. Um sucesso anterior simplesmente não garante um novo sucesso.
Os livros ‘Hugo’, ‘Sem Fôlego’ e ‘Os Marvels’ são uma espécie de trilogia?
Eu não pretendia que fosse, mas acabou se tornando. Há temas comuns que conectam as histórias.
Então podemos esperar uma adaptação de ‘Os Marvels’ para o cinema?
Possivelmente. Durante o processo de criação dos livros, eu somente penso no papel, na interação entre as palavras e as imagens, no leitor avançando pela história virando as páginas. Mas quando terminei as história percebi que as narrativas podem muito bem ser adaptada para o cinema.
São livros classificados como infantojuvenis. Na hora de escrever, pensa que está fazendo uma obra para crianças?
Meu público é a criança principalmente porque meus personagens principais são crianças. Mas não fico pensando nelas enquanto escrevo. Minha preocupação é produzir a melhor história possível. Tanto que raramente leio meus livros para crianças ou peço conselhos a elas antes de a obra ser lançada, mesmo no caso dos meus sobrinhos. Os primeiros meninos ou meninas que têm contato com as histórias geralmente são os que vão às livrarias no dia do lançamento.
Suas duas últimas histórias têm mais de 600 páginas. Fico imaginando um menino de dez anos carregando esses catataus.
[Risos] Os livros realmente parecem intimidadores. Eles são grandes, pesados. Mas como são extremamente ilustrados, mesmo crianças com dificuldades de leitura conseguem se encantar pelas histórias.
Depois de “A Invenção de Hugo Cabret”, muitos pais e professores me contaram que crianças ficaram orgulhosas por terem conseguido terminar uma história de centenas de páginas. Andar com um livro desse tamanho embaixo do braço era um motivo de orgulho. Até alguns adultos vieram me dizer que meus livros foram os maiores que eles já leram em suas vidas. Gosto da ideia de serem histórias acessíveis.
‘Os Marvels’ traz uma série de elementos reais. É sua história mais realista?
Todos meus livros têm elementos relacionados à vida real: coisas das quais eu gosto, lugares em que já estive, pessoas que encontrei. O enredo de “Os Marvels” traz muito da realidade, tanto que, ao terminar a história, o posfácio encoraja o leitor a descobrir o que de verdade existe no romance.
Mas, no fundo, é uma ficção. Embora muito do livro seja baseado em fatos e pessoas reais, fui eu quem criou a trama. Um amigo que mora em Londres e que é a base para um dos personagens sempre aceitou que eu usasse fatos de sua vida para compor o livro. Mas ele também sempre me deu permissão para mudar e transformar o que eu bem entendesse.
Em “Hugo Cabret”, por exemplo, havia George Méliès. O cineasta existiu, foi um dos precursores do cinema. Mas o meu George Méliès é ficcional, até porque ninguém sabe como ele era. O mesmo ocorre em “Sem Fôlego”. O personagem surdo, por exemplo, foi baseado em uma criança surda que conheci. O meu irmão nasceu sem escutar de um ouvido, assim como um personagem do livro. Gosto de misturar elementos do mundo real e ter a liberdade de criar uma ficção com eles.
Alguns desses elementos em ‘Os Marvels’ são temas como família gay, adoção, Aids. Como falar sobre isso para crianças?
Esses elementos vêm das pessoas reais nas quais o livro foi inspirado e da época em que a história se passa, o início dos anos 1990. Muito da história da Aids e de seus desdobramentos simplesmente foi esquecido. Crianças de hoje nem ficaram sabendo, o tema foi afastado delas. Por isso resolvi apresentá-lo, mas com cuidado de não ficar parecendo uma aula de história ou de produzir algo didático.
Esses fatos servem a uma história maior: um garoto que está tentando entender sua família e compreender a si mesmo. Um dos temas que conectam os três livros e os transformam em uma trilogia é justamente a ideia de construir a sua própria família. Nós geralmente rompemos com nossa família biológica e formamos um novo círculo. No meu caso, nascido gay e adolescente nos anos 1980, levei muito tempo até perceber que as pessoas que eu amava poderiam formar o meu novo círculo. Isso aparece nos meus personagens, que sempre estão buscando o seu lugar no mundo.
Pensando no casal gay que inspirou o livro, há uma série de ideias universais que estão envolvidas. Eles se apaixonam, criam um mundo juntos. Para mim, isso não é algo homossexual ou heterossexual –é algo sobre o amor, sobre estar junto e ser artista.
Os Estados Unidos passam por um momento em que Donald Trump pode ser o novo presidente. Em junho, um homem matou em Orlando 49 pessoas em uma boate gay. Em que medida isso afeta os seus livros?
Vivemos tempos difíceis. Eu vivo feliz por ter casado há dois anos com meu marido. Nós não temos filhos, mas temos vários sobrinhos e filhos de amigos que vêm nos visitar. No nosso casamento, cerca de 200 pessoas participaram. Para muitos dos meninos e meninas que estiveram lá, aquela foi a primeira cerimônia da qual participaram –ou seja, para eles foi um casamento normal. Provavelmente não vão se importar no futuro se uma cerimônia tem dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher –o importante vai ser ter duas pessoas que se amam.
Por isso acredito que o mundo está mudando. “Os Marvels” não é um livro sobre gays ou sobre Aids. É uma história sobre encontrar uma nova família, achar seu lugar no mundo, apaixonar-se. Mas gosto da ideia de saber que crianças e jovens lerão o romance e perceberão que tudo aquilo pode ser feito por dois homens. Ou que, ao ler “Os Marvels”, pessoas deixem de ver relações homossexuais como algo estranho ou perigoso.
Como enxerga a literatura infantojuvenil em toda essa discussão?
Nos Estados Unidos, estamos vivendo uma grande mudança no mercado editorial. Há diversos livros para crianças e adultos que se preocupam em retratar a diversidade do mundo, com personagens gays, trans e com diferentes pontos de vista.
Quando eu era criança, existiam poucos personagens gays. E, quando aparecia algum, geralmente ele tinha algum fim trágico. Por isso fico feliz que “Os Marvels” esteja sendo publicado no Brasil e em outros países, ultrapassando fronteiras. Tenho esperança de que ele dialogue com pessoas que ainda têm medo do tema homossexualidade e tentam parar uma transformação que está em curso –a da aceitação de que duas pessoas apaixonadas devem ficar juntas.
Mudando um pouco de assunto, há uma antiga entrevista sua em que diz que escrever é uma tortura. Ainda é?
[Risos] Eu levo três anos para concluir um livro como “Os Marvels”. Quando começo, tenho poucas ideias dos elementos que quero incluir na história, não sei para onde os personagens vão ou quem eles são. E fico com receio de nunca descobrir essas coisas. Passo muito do meu tempo apreensivo e me sentindo mal por não resolver esses problemas rapidamente.
Geralmente começo a pensar em um novo livro a partir de elementos narrativos. Só depois decido os personagens e os fatos mais concretos que vou encaixar e conectar com esses elementos do roteiro. Por último, trabalho em cima das emoções que motivam os personagens a caminhar pela história. O problema é que, quando você lê um livro, a sua experiência é oposta a essa ordem. Começa pela emoção. Então o escritor precisa encontrar logo a parte emocional, senão o livro não funciona. E é isso o que me deixa aflito.
Está trabalhando em um novo projeto?
A trilogia está terminada, mas estou preparando dois novos livros: uma obra para crianças pequenas e um novo romance ilustrado, que vai ser quase um primo dos outros três. Em “A Invenção de Hugo Cabret”, “Sem Fôlego” e “Os Marvels”, tentei sempre fazer algo diferente. “Hugo” conta uma história com palavras e ilustrações, “Sem Fôlego” traz duas narrativas, “Os Marvels” também conta duas histórias, mas uma desenvolvida apenas com desenhos e a outra somente com texto, sem imagens.
Não quero repetir no novo livro exatamente o que já fiz nos outros três, seria muito fácil. Meu desafio agora é encontrar um jeito inédito de trabalhar com ilustrações e texto. E a frustração é um ótimo indício de que estou no caminho certo.
Autor e ilustrador Brian Selznick
Tradução Santiago Nazarian
Editora SM
Preço R$ 65 (672 págs.)
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