Brasileiro não conhece a literatura do próprio país, diz Ziraldo
Prestes a completar 84 anos e com mais de 150 livros e 8 milhões de exemplares vendidos, Ziraldo diz que ainda está longe de perder o pique.
“Tudo o que você faz com carinho não cansa”, diz o escritor, que participou das 24 edições da Bienal do Livro de São Paulo e autografa sua nova obra no evento deste ano, neste domingo (4), a partir das 15h, no estande da editora Melhoramentos.
Quando criança, Ziraldo era moleque. Subia em árvore, corria e jogava bola. Por isso, a maior parte do seus personagens são meninos –o mais famoso deles, um bem Maluquinho. Mas de um tempo para cá, ele vem explorando o universo das garotas. Seu novo livro, “Meninas”, é um elogio à fase que toda menina passa: o período entre largar a boneca e o o início da pré-adolescência.
Leia abaixo entrevista que o autor deu ao blog.
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Folha – A Bienal está mais vazia neste ano?
Ziraldo – A Bienal sempre é muito cheia. Mas já foi muito mais. Acho que o pessoal anda meio sem dinheiro.
O engraçado é que são as mesmas famílias que vêm falar comigo. Outro dia apareceu um avô para eu autografar o livro dele. Mas pai e mãe segurando os livros que leram na infância, muitas vezes acompanhados dos filhos, são metade da fila de autógrafos. Por isso demora tanto. O ruim é ficar quatro horas sem ir ao banheiro –sendo que velho vai de meia em meia hora, né?
Qual o segredo para aguentar firme nas filas tão grandes?
O negócio é o seguinte: tudo o que você faz com alegria, com diversão, não cansa. É isso o que sei fazer, é o que eu faço no capricho. E eu tenho uma característica física ou psicológica que me faz cansar só depois que acaba. Não registro cansaço enquanto estou dando autógrafo nem sensação de fome. Mas, quando acaba, eu caio morto.
E como está a saúde?
Ninguém entende a velhice. Eu cheguei na velhice e descobri que ninguém entende mesmo. A única coisa em comum que um velho tem com o outro são as dores. Qualquer organismo com mais de 80 anos está com os mesmos problemas. O que envelhece é o “cavalo”, a “entidade” está bem. Na umbanda, nosso corpo se chama cavalo. E nossa alma se chama entidade. Quando está na hora de a entidade se mandar, o que a pessoa faz? Canta para subir. Eu estou quase na hora de cantar para subir [risos].
Sua religião é a umbanda?
Imagina. Eu não sigo religião nenhuma. Nasci em uma família católica, ainda faço o sinal da cruz até hoje. Mas como proposta filosófica, a umbanda é a religião mais bonita do mundo.
As crianças que vêm pedir autógrafo mudaram muito nesses anos?
Mudaram nada. Criança não muda. A essência humana não muda. Freud usou esteriótipos gregos, ligados à cultura da Grécia antiga. Os gregos já eram neuróticos. Quer ver? Tente inventar um sentimento. Pode ficar anos pesquisando. Não tem como. O elenco de sentimentos é finito e são os mesmos desde que o homem é homem: inveja, saudade, carência, alegria, tristeza. É só isso o que a gente tem. O sentimento é imutável.
Então, a criança também não mudou nada. Veja aquele conto do flautista mágico, que tocava e fazia as crianças seguirem ele. Isso ainda está aí. Só que elas correm atrás da televisão, do MMA. Mas o sentimento ainda é o mesmo. Por isso, meus personagens não tem nome. É sempre o Menino. Porque eu falo de sentimentos.
E agora é a vez da Menina.
Na verdade, essa história é um ensaio disfarçado. Quis falar sobre essa instituição fantástica que é a menina, que só dura quatro verões: dos 7 aos 11 anos. Depois disso, ela é pré-adolescente, começa a ser tocada fisicamente pelas diferenças sexuais. Antes disso, ela ainda brinca de boneca. Mas esses quatro anos, quando a menina descobre a si mesma no mundo e vai se questionando em relação aos outros, é o momento mais bonito do ser humano.
Por que falar especificamente sobre essa fase?
Não tem esse negócio de inspiração. Você está envolvido com a literatura todos os dias. É aquela história do sambista. De repente cai uma folha da mangueira. Aí eu falo: “Pô, olha aí uma folha caindo da mangueira”. É o que o ser humano registra. Aí, vem o sambista. Ele vê a mesma cena e já pensa: “Nossa, isso dá um samba”.
O menino pra mim dá samba, porque eu fui menino. Agora comecei a pensar em menina também.
“Meninas” faz referências a todo instante a “Alice no País das Maravilhas”.
Eu tenho uma neta chamada Alice. Em toda viagem que faço, compro um “Alice no País das Maravilhas” para ela. É um dos livros mais traduzidos do mundo. Ela tem “Alice” em japonês, coreano, egípcio. São mais de cem versões na casa dela. Eu já li e reli a história trezentas vezes. Estudei muito sobre o Lewis Carroll. O que está contido nesse livro novo eu percebi nas minhas sucessivas leituras.
Em “Alice”, Carroll não descreve uma menina –mas a entidade feminina enquanto criança. Só que eu não ia escrever isso num livro, né? Agora, se você ler, é isso o que está sendo dito.
O livro surge em uma fase em que falar sobre feminismo está na moda.
Outro dia, veio uma menina falar que era muito simpático eu trabalhar pelo empoderamento da mulher. Aí, quando ela foi embora, pensei: o que é empoderamento? Eu nunca tinha ouvido essa palavra. Só depois vi que era uma palavra da moda, sobre “levar ao poder”, “dar poder”. Não sei se está dicionarizada, mas faz sentido.
Eu estava com um amigo outro dia: “Fulano de tal é muito inteligente, mas tem uma ‘pedância’ muito grande.” É um cara pedante, logo ele tem “pedância”. As palavras são assim, são inventadas, como “empoderamento”. Por que não existe “interessância”?
O empoderamento feminino pode impulsionar o livro?
Pode ser, mas não fiz com essa intenção. Eu não faço nada com segundas intenções. Faço quando me comovo com um tema.
O fato é que a menina lê mais do que toda a fila de meninos. Quem lê é menina. É sempre ela que pede para tirar foto comigo, quer um autógrafo. Menina sempre leu mais que menino e sempre teve mais preocupações de ordem filosófica. O ser humano feminino se questiona muito mais que o masculino.
O brasileiro conhece bem a literatura brasileira?
Não conhece nada! Quem lê com profundidade por aqui?
Mas pode ser que surja em breve uma geração de leitores, porque há um esforço profundo para que isso ocorra. Principalmente depois que foi aprovada a última lei de Diretrizes e Bases [em 1996] e que passou-se a adotar livros nas escolas. É isso o que permite ao escritor infantil minimamente sobreviver –e não a venda em livraria.
Também tinham as compras do governo
E esse governo parou de comprar. Já quebrou muita editora. Teve editora nesses últimos anos que não lançou nenhum livro novo.
Até quando pretende escrever para crianças?
Enquanto eu estiver vivo. Tenho uma série em que criei dez personagens. Cada um habita um planeta diferente do Sistema Solar. Faltam três. Eu fiz para garantir pelo menos dez anos de vida. Faço um por ano e não posso morrer enquanto não acabar a série. Se, assim que escrever o décimo, eu não apagar, conforme o compromisso que assumi, aí invento outra série. De 12 livros [risos].
Pode fazer dos signos. Está na moda também.
É uma boa ideia, hein? Criar uma história para o Escorpião.
Daqui a 50 anos, seu nome vai ser lembrado pela literatura infantojuvenil?
Se você consegue encantar uma geração, fica muito difícil de desaparecer. É o caso do Monteiro Lobato, do Lewis Carroll, irmãos Grimm.
Não pretende entrar para a Academia Brasileira de Letras?
Fui candidato, mas renunciei porque o José Mindlin [1914-2010] também se candidatou. Quando o Mindlin morreu, eu falei para eles que ia me candidatar de novo. Aí me disseram que talvez fosse melhor esperar, porque tinha outro nome forte na disputa. Mas não é eleição? Achei que seria natural ficar com a vaga que tinha dado para o Mindlin e continuei na disputa. Dei com os burros n’água. Aí não me candidatei mais. Mineiro é assim. Mas pode escrever aí: se eles quiserem me chamar, aceito sem problemas.
“Meninas”
Autor Ziraldo
Editora Melhoramentos
Preço R$ 49 (2016; 48 págs.)
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