‘Existe o livro digital, mas não há literatura digital’, diz Ana Maria Machado; leia entrevista

Bruno Molinero

Mais de um milhão de exemplares vendidos, não apenas no Brasil, mas também em países como Suécia, Estados Unidos, Dinamarca e diversos da América Latina. Lançado em 1986, “Menina Bonita do Laço de Fita” completa 30 anos e se fixa como um dos maiores sucessos de Ana Maria Machado –ao lado de outro clássico, “Bisa Bia, Bisa Bel”.

A história fala sobre uma menina negra e um coelho, que tenta entender como a pele dela é tão escura e tenta deixar de ser tão branquinho.

A autora, que faz parte da Academia Brasileira de Letras, conversou com o blog sobre a obra, literatura para crianças e adultos, livro digital e a própria Academia. “Não tem importância extraordinária eu ter uma obra infantojuvenil grande e fazer parte da ABL”, diz.

Leia a íntegra abaixo.

 

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A escritora Ana Maria Machado posa para foto no Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro (RJ). (Foto: Alexandre Brum/Agência O Dia) *** PROIBIDA A PUBLICAÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS ***
NOME Ana Maria Machado // IDADE 74 anos // LIVROS RECOMENDADOS “Bisa Bia, Bisa Bel”, “Mico Maneco”, “Menina Bonita do Laço de Fita” // LIVRO FAVORITO NA INFÂNCIA “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato

 

Folha – Como é revisitar “Menina Bonita do Laço de Fita” depois de 30 anos?

Ana Maria Machado – Na verdade, é uma história que nunca parei de ler ou de contar. Tive filhos nas décadas de 1960, 70 e 80, que tiveram filhos em diferentes épocas. Também sou a mais velha de 11 irmãos, tenho vários sobrinhos. Isso fez com que sempre estivesse cercada de crianças, com a história da menina presente a todo instante.

 

O fato de ler a história em diferentes épocas mostra como ela permanece muito atual.

Ela funciona com crianças diferentes, de épocas diferentes, de países diferentes. Não é algo específico desse livro, mas da literatura em geral. Quando a escrita propõe uma estrutura narrativa, um jogo de palavras, ela se torna perene, como um quadro. Toca em pontos comuns. O que já não acontece com o livro didático, mais voltado à educação, que é ultrapassado pelo tempo.

 

Vivemos uma ditadura da moral da história?

É um problema desde sempre. Os livros infantojuvenis sempre estiveram ligados à educação, desde as fábulas. Mas quando falamos de clássicos, falamos de histórias recontadas. Por La Fontaine, por exemplo, que as escreveu em verso, com estilo. É isso o que as faz permanecer sendo lidas por gerações. Veja “Alice no País das Maravilhas”, por exemplo. Lewis Carroll não fez a história com um fundo didático, por isso o livro é lido até hoje.

O mercado e a educação no Brasil corroboram para o volume de lançamentos com preocupações mais educacionais. Como a escola é muito vinculada ao livro, o governo fazia grandes compras para abastecer essa escola. E o mercado ainda hoje acompanha e lança um grande volume de livros educativos, com mais chances de serem comprados.

O que quero dizer é que todo livro de literatura infantil é para criança. Mas nem todo livro para criança é literatura infantil.

 

A criança se transformou nesses últimos anos?

Mudou os aspectos exteriores, circunstanciais. Eu brincava na terra e fazia uma série de jogos que crianças hoje, nas grandes cidades, não fazem mais. Mas me impressiono como, no fundo, mudamos pouco. Crianças –e mesmo adultos– de lugares diferentes, de tempos diferentes, são muito parecidas.

Nos anos 1980, quando lançava de “De Olho nas Penas”, fui a Angola e depois à Suécia para divulgar o livro. Fiquei impressionada como as crianças da África, que muitas vezes viviam em lugares sem energia elétrica, faziam as mesmas perguntas que os meninos da Europa. E são as mesmas questões que escuto ainda hoje quando vou a uma escola no Brasil.

Reagimos a “Anna Karenina” e a “Madame Bovary”, pelo menos nas questões principais, da mesma forma que há cem anos. Isso não muda.

 

Ainda viaja para lançar seus novos livros?

Meu pai sempre me dizia que eu era uma ciganinha. Gosto de conhecer novos lugares, novas comidas, falar com gente diferente. E como tenho a possibilidade de ter uma obra conhecida em outros países e receber convites para ir a diferentes lugares, eu vou sempre que posso.

 

Sua obra adulta é tão conhecida fora do Brasil quanto a infantil?

A infantil é muito mais. Quando lancei meu primeiro romance adulto, ainda nos anos 1980, eu era considerada uma “iniciante promissora”. Mas o mercado, naquela época, queria traduzir autores já consagrados, o que fez meus livros ficaram restritos ao Brasil. Hoje, esse mesmo mercado busca o iniciante promissor, aquele autor com um ou dois livros lançados. E eu já sou uma escritora mais conhecida. De certa forma, estive sempre na contramão. Meus livros adultos pouco chegaram a outros países.

É como a Lygia Fagundes Telles, que pouco foi traduzida. Quando eu era presidente da Academia Brasileira de Letras, levei os livros dela para Salamanca, na Espanha. Eles ficaram maravilhados, surpresos por não conhecerem uma escritora tão incrível. Mas, para ser traduzida hoje, talvez ela precisasse desaparecer com uns 15 livros de sua obra, ser uma “iniciante promissora”.

 

Qual a importância de ter uma escritora de livros infantojuvenis na Academia?

Quase metade dos imortais escreveram para crianças. Os anteriores também. Olavo Bilac tem poemas infantis, por exemplo. Não tem importância extraordinária eu ter uma obra infantojuvenil grande. Tenho romances adultos, carreira jornalística, falei sobre Guimarães Rosa na própria Academia antes de entrar.

 

Como é transitar entre o universo adulto e infantil?

Qualquer pessoa é poliglota em sua própria língua. É capaz de perceber que a linguagem que usa no futebol é diferente da usada para pedir aumento ao chefe. Ou de brincar de carrinho no chão e depois ir a uma passeata política.

É natural caminhar entre a obra adulta e a para crianças. Não é nada demais. Talvez ter pessoas de idades muito diferentes na família ajude.

 

Literatura infantojuvenil é considerada de segunda classe?

No Brasil não é e nunca foi. Historicamente, a literatura brasileira tem poucas distinções entre adultos e crianças. Grandes autores escreveram para esse público, como José Lins do Rego, Vinicius de Moraes, Mário Quintana, Rubem Braga, Cecília Meireles. Outros tiveram textos feitos originalmente para adulto, mas publicados posteriormente para crianças. Machado de Assis, por exemplo.

Você não encontra essa variedade em nenhum outro lugar do mundo. Além disso, tivemos um pioneiro fantástico: Monteiro Lobato, que escrevia para adultos e crianças. E tinha uma grande preocupação com o livro, do texto à edição, sem se importar se aquela obra ia formar um leitor grande ou pequeno. Quem leu Lobato tem um parâmetro de qualidade alto na hora de comprar um livro para o seu filho ou de adotar uma história em sala de aula.

Quem esquece muitas vezes essa qualidade é o público que já não lembra o que leu, o jornalista, o professor.

 

Como explicar essa variedade de autores que escreveram para crianças no Brasil?

Não sei. Já falei com muita gente sobre isso. Uma vez, o Darcy Ribeiro disse que era uma herança indígena. Para os índios, não havia diferença entre falar com um adulto e com uma criança. Não havia jogos de poder. E isso teria se refletido na literatura produzida aqui. Não sei se explica, mas gosto desse pensamento.

 

O futuro do livro é digital?

Existe um descompasso entre a criança, que vive em um mundo digital, e a literatura apresentada nos livros digitais. Temos vários que funcionam bem, mas não são literatura –não apresentam as manifestações literárias na tela, os jogos de palavras, as ambiguidades. O livro não cresce com o leitor. Porque o poder do bom livro é fazer quem lê se encantar com a história aos seis anos e, tempos depois, descobrir coisas que não tinha percebido na primeira leitura. E reler aos 9, aos 12, quando for adulto.

Por isso, podemos dizer que existe o livro digital, mas ainda não podemos falar em literatura digital. O que não significa que não vá existir. O potencial é muito grande, as crianças se dão muito bem com a plataforma, com os vídeos. Mas, por outro lado, não acho que vá substituir o livro de papel. Eles irão coexistir.

 

Grande parte de seus últimos livros não são infantis. Há algum no caminho?

Não trabalho com projetos ou planejamentos, sou guiada pela maré. Passei os últimos anos em um processo paralelo, o que é bem raro para mim: terminei um juvenil e um adulto. Agora estou em fase de desmame.

Mas já trabalhando em um livro de contos para adultos. E tem algo para crianças no caminho, mas ainda é só uma ideia na cabeça.

 

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Autora Ana Maria Machado

Ilustrador Claudius

Editora Ática

Preço R$ 36,90 (1986; 24 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 


 

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