O que leem as adolescentes da Fundação Casa que já são mães?

Bruno Molinero

Por fora, é um prédio comum. A porta metálica divide o muro branco que tem mais de seis metros de altura com janelas de vidros escuros. Ninguém olha, porque o que acontece dentro desse prédio na Mooca é um mistério para os que passam pela rua ou estacionam o carro em frente aos sobradinhos de classe média do outro lado da calçada –típico dos muitos galpões que ainda se espalham pelo bairro da zona leste de São Paulo. Até que, ao interfone, uma voz metálica, como a unha de uma professora riscando o quadro negro, interroga: “Pois não?”

As boas-vindas vêm na forma de um detector de metais, ficha assinada com dados pessoais, apresentação do documento de identidade e o celular devidamente guardado em uma gaveta –ele deve ficar preso durante todo o tempo em que o seu dono estiver no interior da fortaleza. Mais adiante, ao atravessar corredores cheios de portinhas, onde não é possível saber se é dia ou noite, chega-se a uma antiga sala de aula, dessas de escola. É lá, atrás de portas, grades, chaves, ferrolhos, no fim de corredores tortuosos, protegidos por um muro de seis metros e por toda a burocracia que mora algo frágil: uma biblioteca.

“Eu viajo com o livro. Mas viajo mesmo, como se pudesse sair daqui. A mente parada pensa muita besteira”, diz Mariana, 18.

Já faz dois anos que a jovem de olhos castanhos sempre fixos no interlocutor e cabelos tingidos de loiro não sai à rua. Vestida com um conjunto composto por moletom e calça de mesmas cores –um tom de lilás que dá às roupas um ar de pijama–, Mariana é uma das responsáveis por organizar o acervo e registrar os empréstimos feitos na biblioteca, inaugurada em novembro do ano passado.

“Você tinha que ver o primeiro dia de empréstimos. Ficou um silêncio na quadra. Todo mundo lendo”, lembra.

Tanto a biblioteca quanto a quadra ficam dentro de uma unidade da Fundação Casa, a antiga Febem, onde vivem apenas garotas. Com capacidade para 102 adolescentes, o local conta hoje com 128 meninas, todas entre 12 e 21 anos e com algo em comum: cometeram atos infracionais graves e perderam a liberdade (pela legislação, menores de idade não cometem crimes, mas atos infracionais, e a internação pode chegar a no máximo três anos). As causas mais comuns são roubo, tráfico de drogas e homicídio. Como as infrações aconteceram quando ainda eram menores, os nomes verdadeiros delas e outros detalhes sobre as jovens foram preservados neste texto.

Mas essa unidade tem ainda uma subdivisão interna, inacessível para a maior parte dessas garotas. O prédio é como uma matrioska, aquelas bonecas russas cheias de camadas, com uma grade dentro das grades, um muro dentro dos muros. O local separado é uma casinha nos fundos, com muros pintados com personagens de desenhos animados e um tatame colorido sobre o chão da sala que sustenta brinquedos de bebês, pufes e um pequeno sofá. O restante dos 283 m² acolhem banheiros, uma sala de recreação e quartos mobiliados com camas e berços. Pelos cantos, livros infantis saídos do acervo da biblioteca à disposição.

 

A chamada “Casa das Mães”, ou tecnicamente Pami (Programa de Acompanhamento Materno-Infantil), é um espaço específico dentro da Fundação que recebe apenas adolescentes que foram internadas grávidas ou que são mães de bebês e recém-nascidos. Atualmente dez garotas vivem ali, separadas das demais a partir da 32ª semana de gestação ou na companhia de seus filhos –crianças que crescem e passam os primeiros anos de suas vidas dentro da Fundação Casa, onde brincam, são amamentadas, têm as fraldas trocadas e choram de madrugada.

O Pami surgiu em 2003 como alternativa contra a separação de filhos pequenos e mães que perderam a liberdade. Tudo no espaço parece ser exceção à regra do que se imagina de uma unidade da ex-Febem e da questão complexa que passa por discussões sobre a revisão da maioridade penal e a falta de informações e números concretos que mapeiem estatisticamente a criminalidade de adolescentes no país.

A começar pela rotina dessas adolescentes. As mães acordam às 6h para dar banho nos bebês. Depois do café da manhã, elas limpam a casa e organizam a bagunça das crianças. A programação matinal conta ainda com cursos profissionalizantes –de aulas para se tornarem cabeleireiras a fotógrafas–, idas à biblioteca e tempo livre para ficarem próximas dos filhos. Não é raro ver alguma delas sentadas sobre o tatame, lendo ou mostrando ilustrações de um livro para um bebê deitado no colo. À tarde, vão à escola, que fica dentro da própria Fundação. Na ausência das mães, funcionárias cuidam das crianças.

O dia a dia aparentemente tranquilo pode maquiar a informação de que as internas são, de fato, internas. “Tenho curiosidade de levar minha filha pela primeira vez num parque. Não sei como vai ser”, diz Luisa, 18, mãe de uma menina de dois anos. “Cheguei aqui num piscar de olhos, cinco dias depois do nascimento da minha filha. Me trouxeram sozinha, sem ela. Foi a pior fase da minha vida.” Dois meses depois, a menina foi encaminhada para a Fundação. E Luisa, para a “Casa das Mães”.

LIVROS E COPOS DE VIDRO

Mas não é só a rotina que as diferencia. A própria unidade feminina foge à regra do que é a realidade da Fundação Casa no Estado de São Paulo. A população de jovens infratores é essencialmente masculina. Dos 9.676 adolescentes atendidos hoje, nada menos do que 9.288 são garotos (96% do total). E apenas seis das 145 unidades ativas no Estado são femininas –quatro na capital e apenas uma com Pami.

As infrações também são diferentes. Na estatística geral, os casos mais frequentes são roubo qualificado (43,3%) e tráfico de drogas (38,9%) –homicídio, por exemplo, representa apenas 1% dos casos. Na “Casa da Mães”, os atos mais comuns são tráfico de drogas (36,4%) e homicídio (36,4%). Segundo os números, as mães matam mais. Mas é preciso levar em conta que elas são um grupo pequeno, o que torna complicado fazer uma comparação entre as estatísticas.

“Tive o privilégio de ver de perto o nascimento e o crescimento do meu filho. Vi quando ele começou a engatinhar, deu os primeiros passos, falou as primeiras palavras. Não sei como seria fora, não sei se teria essa oportunidade. Aqui não existe celular, internet, WhatsApp. Você dá mais valor para o contato”, diz Julia, 17, mãe de um menino de dois anos. Fã de animes e mangás quando estava fora, quando “andava com companhias erradas”, a adolescente se tornou fã da escritora Marian Keyes no Pami. “Peguei um livro dela na biblioteca e me apaixonei. Meu favorito é ‘Tem Alguém Aí?’”, conta.

A biblioteca inaugurada no ano passado foi criada em parceria com o Instituto Brasil Leitor, que doou o acervo. O grafite e os desenhos que decoram as paredes da sala reformada e adaptada, bem como os recados na lousa e o restante da decoração, também foram feitos pelas internas. São cerca de mil livros, que ficam à disposição de segunda a sexta, sempre no período da manhã. Na sexta-feira, as adolescentes podem fazer empréstimos e passar o fim de semana com um dos exemplares –foi nesse dia que Mariana viu a quadra da Fundação quieta por causa da leitura.

O espaço substituiu a antiga biblioteca da unidade, cujo acervo tinha livros técnicos e enciclopédias, mas nenhum de literatura. E, afinal, o que leem as mães e as demais internas da Fundação? Os títulos mais procurados hoje são os das sagas Crepúsculos e Harry Potter, além de best-sellers da escritora Zibia Gasparetto, gibis da Turma da Mônica e obras com temática LGBT. Tanto as garotas do Pami quanto as demais adolescentes têm acesso às prateleiras e podem “trabalhar” como bibliotecárias para ajudar na organização do espaço. As mães também têm livros para bebês, levados para a casa do Pami, onde ficam as crianças.

“Ajuda a passar o tempo mais rápido e a não sentir falta de pequenas coisas lá de fora: como ver a lua, pegar ônibus lotado”, conta Luisa. “Ou tomar água em copo de vidro”, diz Julia, rindo. Por motivos de segurança, objetos de vidro são proibidos no local.

Mas os livros não. Quem quiser doar obras para a biblioteca pode enviá-las por correio ou entregá-las pessoalmente no endereço da unidade: rua Japuruchita, 300, Mooca, São Paulo (SP).

 


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