As três margens de um novo livro: Odilon Moraes, Guimarães Rosa e o silêncio
Há histórias que são feitas de palavras. Outras são escritas com silêncio.
“Eu conversava muito pouco com meu pai. Mas a gente sempre pintava juntos. Foi ele quem me ensinou”, conta Odilon Moraes. Os hiatos e os não ditos que começaram na infância do ilustrador invadiram a vida adulta e saltam agora nas páginas de seu novo livro: “Rosa”, que sai pela jovem editora Olho de Vidro no início de setembro e tem texto e ilustrações feitos por Moraes.
A obra trata do relacionamento entre pai e filho, mas é mais do que autobiográfica. É cheia de camadas –assim como todo silêncio não é apenas um vazio. “São três fases: a primeira é a relação com meu pai e com meu filho; a segunda é a obra do Guimarães Rosa; a última é uma referência à própria escrita do livro ilustrado.”
O resultado é uma história poética que funciona com crianças e adultos, feita para ser lida várias vezes. Ou melhor, para ser contemplada: como um rio que tem três margens.
Primeira margem: paternidade
O título começou a ser gerado há uma década, semanas antes de o filho de Odilon Moraes nascer. “A ‘gravidez’ masculina é feita de silêncio. A mulher tem corpo, matéria, ganha um volume na barriga. O homem não. A gravidez fica na cabeça, a espera pelo filho é cheia de silêncios. É no quase tornar-se pai que você dialoga com o seu próprio pai –e entende muitas das coisas paternas”, diz o ilustrador. “Foi esperando o João, meu filho, com tudo isso na cabeça, que comecei a esboçar as primeiras páginas.”
No livro, em um “endoidamento”, o pai decide chamar o filho de Rosa. Depois, numa madrugada, entra em uma canoa e passa a morar no meio de um rio, abandonando a família. Completamente isolado. É nessa hora que a narrativa mistura as vidas de Odilon e de João com a história de um outro João.
Segunda margem: Guimarães Rosa
As coincidências com João Guimarães Rosa (1908-1967) vão além do título. “Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: –‘Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim…’”, diz o personagem do conto “A Terceira Margem do Rio”, publicado por Rosa em “Primeiras Estórias” –mas bem que poderia ser Odilon Moraes falando das pinturas com o seu pai; ou o personagem do novo livro do ilustrador lembrando a infância.
O conto, um dos principais de Guimarães Rosa e da própria literatura brasileira, narra também o afastamento da figura paterna. Assim como em “Rosa”, o patriarca se isola no meio de um rio e decide passar a vida em uma canoa sobre as águas, sem jamais voltar à margem e à família. “Queria fazer algo que funcionasse como uma continuação do conto. O frio na barriga de mexer com uma história tão conhecida nunca desaparece. Você se pergunta o tempo inteiro se tem direito de interferir naquilo”, diz Moraes.
A diferença é que, na narrativa de Guimarães, o filho não tem coragem de entrar no rio e ir em direção ao pai. Já em “Rosa”, ele topa a empreitada.
Terceira margem: o livro
A última margem da história é o silêncio e as possibilidades do próprio livro ilustrado. “Maurice Sendak falava que uma história ilustrada tem o tempo e o ritmo da poesia, como se fosse um poema gráfico”, fala Moraes, referindo-se ao autor de “Onde Vivem os Monstros”. “As possibilidades são muitas, como narrar em dois tempos distintos.”
“Rosa” não é só para ser lido duas vezes –ele precisa passar por essas duas leituras. Só assim percebe-se que texto e imagem não coincidem nem falam sobre a mesma coisa: um está no passado, o outro mostra o presente (e não vou dizer qual é qual para não estragar a surpresa).
Essa liberdade, presente também em outras obras do autor, acabou fazendo com que os livros autorais de Moraes fossem publicados por editoras menores. “Rosa” sai pela Olho de Vidro, que abriu as portas em 2017; seus outros títulos estavam com a extinta Cosac Naify e serão agora publicados pela Jujuba –o premiado “Pedro e Lua” deve chegar às livrarias em janeiro. “Gosto de ter contato próximo com o editor, tomar um café para decidir os passos do processo de publicação, visitar a gráfica. Em uma editora grande isso é difícil.”
O que não quer dizer que ele fuja do “mainstream”. Neste ano, por exemplo, o ilustrador fez a arte do primeiro infantil do colunista da Folha Drauzio Varella para a Companhia das Letrinhas. Outras gigantes do mercado editoral também têm o traço de Moraes em seus catálogos.
Mas para suas próprias palavras ele prefere os pequenos e o silêncio –de onde acaba de brotar uma “Rosa”.
“Rosa”
Autor e ilustrador Odilon Moraes
Editora Olho de Vidro
Preço R$ 49,90 (2017; 48 págs.)
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