Literatura é um ‘cavalo de Troia’ dentro da escola, diz Ricardo Azevedo; leia entrevista
Um cavalo de Troia, que esconde dentro de si elementos capazes de confundir e de tirar os alunos da zona de conforto.
É com essa imagem que o escritor Ricardo Azevedo fala sobre a relação entre literatura e sala de aula. “Tem que entrar na escola para bagunçar um pouco, trazer ideias que não são esperadas, mostrar conflitos e contradições humanas”, diz.
Conhecido por pesquisar sobre a cultura popular e os contos orais ao longo de mais de 30 anos, Azevedo ganhou diversos prêmios e publicou dezenas de livros para crianças (caso de “Contos de Enganar a Morte”, da editora Ática, que tem uma das ilustrações publicadas na abertura deste texto).
Agora, o autor se debruça sobre as histórias para adolescentes. Lançado pela Ática em 2013, “Fragosas Brenhas do Mataréu”, por exemplo, fala sobre um jovem de 15 anos que precisa encarar a morte da mãe no século 16. “Caderno Veloz” saiu pela Melhoramentos em 2015 e propõe um diálogo entre poesia e ilustração.
O autor e ilustrador acaba de finalizar uma nova obra sobre o período colonial brasileiro, também para um público mais velho. “Quero conversar com esses caras.”
Leia abaixo a entrevista.
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Folha – Quando combinamos esta conversa, disse que gostaria de falar mais sobre seus livros juvenis do que sobre os infantis. Por quê?
Ricardo Azevedo – Os juvenis andam me interessando bastante. Quero conversar com esses caras, escrever para eles. Meus últimos trabalhos são todos para um público mais velho. Acabei há pouco tempo um texto que parte da mesma pesquisa que usei no “Fragosas Brenhas do Mataréu” [Ática, 2013] . Fiquei muito interessado no assunto e continuei lendo e estudando mais sobre o período colonial brasileiro. Algumas ideias que não tinha usado, que acabaram sobrando na preparação, entraram nesse novo livro.
Tem previsão de lançamento?
Ainda não. Tenho que fazer uma boa revisão, ter tempo para olhar.
Como conquistar o adolescente? Muita gente diz que o jovem não lê. Ou que ele só se interessa por livros de youtubers, por exemplo.
Não sei, não consigo ver as coisas por esse ângulo. Talvez eu seja um alienado total. Para começar, acho faixa etária um erro, uma besteira. Serve só para as aulas de ginástica. Do ponto de vista da leitura, falar sobre pessoas de quinze anos como se elas formassem um grupo homogêneo é quase ridículo. É uma mercantilização da vida. Dividir as coisas em “mundo jovem”, “mundo adulto”, “mundo da terceira idade” é uma maneira de criar mais produtos. No fundo, são todos seres humanos.
E escrevo pensando nisso. Claro que, provavelmente, um leitor de dez anos não vai conseguir ler o “Fragosas” ou esse novo. São maiores, têm vocabulário mais complexo, estão inseridos em um período histórico brasileiro que não é todo mundo que domina. Demanda mais experiência –experiência de vida mesmo. Mas não me preocupo com faixa etária. Não existe um assunto para jovens. Assim como não existe um tema para crianças. Meus livros menores trazem assuntos pelos quais os adultos também se interessam.
O mercado não costuma pensar como você.
O mercado é refém da faixa etária por causa da escola, que é a grande consumidora de livros para crianças e jovens no Brasil. Mas livro didático é uma coisa, literatura de ficção é outra. A literatura é um cavalo de Troia. Tem que entrar na escola para bagunçar um pouco, trazer ideias que não são esperadas, mostrar conflitos e contradições humanas.
Quais são os temas da literatura?
Existem assuntos que não vão ser discutidos em aula espontaneamente. A paixão entre duas pessoas, por exemplo, não é explicada pelo professor. Mas é um assunto que diz respeito a todos nós, da infância até os 200 anos de idade. A literatura pode abordar isso. Os conflitos também. Se alguém gosta de duas coisas ao mesmo tempo e elas são opostas, isso é literatura. E pode virar um baita assunto para a sala de aula.
Os pais e professores andam protegendo as crianças de temas mais complexos de uma forma exagerada?
Uma criança que sai à rua vê pessoas comendo lixo na esquina de casa. Os conflitos estão dados. O mercado não vai impedi-los de existir nem de serem vistos. A questão é: como lidar? Não podemos simplesmente jogá-los no colo de alguém com dez anos de idade. Ele está impotente. Temos que tomar cuidado de apresentar a realidade de maneira com que a criança tenha pelo menos esperança de mudar esses problemas.
É função do livro abordar essas temáticas?
Eu não vejo o escritor como um profissional que fica procurando qual é a demanda ou o assunto do momento. Isso parece coisa de livro didático. Ele é alguém que está desenvolvendo um trabalho. Se essa trajetória vai passar por um assunto polêmico, acho que ele deve trazê-lo à tona. Mas tem que existir uma consistência dentro da obra. Ou o autor pode virar uma espécie de redator das demandas sociais –sejam as do público mais politicamente correto ou as do politicamente incorreto. Se é para fazer isso, prefiro mudar de profissão.
É o caso da sua pesquisa com cultura popular.
É um trabalho que segue desde os anos 1980. Em muitos dos contos populares aparecem figuras como diabos e bruxas. Sei que algumas religiões não aceitam esse tipo de coisa. Mas eu não posso fazer nada. Respeito, mas não vou deixar de fazer o meu livro.
Como viu os recentes casos de ataques a obras de arte, como a mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre, a performance “La Bête”, no MAM-SP, e a exposição sobre sexualidade, no Masp?
Existe um ponto que não está sendo discutido: o que é uma obra de arte? Arte é um trabalho que demanda uma pesquisa de longa duração, uma especulação estética e uma série de outros ingredientes. Muitas vezes, a gente fica sem critério para saber se aquilo é arte. Isso só confunde a população que não é informada sobre o assunto e que não tem costume de visitar museus.
É claro que sou contra a censura. Só faltava essa agora, a censura voltar. Mas vejo um descaso muito grande na discussão artística. As pessoas querem aparecer, tirar selfies em frente à obra. Mas não querem investigar, se aprofundar, ver se por trás daquilo que está exposto há uma pesquisa do artista. Vivemos uma época de autocertificação. Quem diz que isso é uma obra de arte? Sou eu? Aí fica complicado, porque vira qualquer coisa.
Voltando à cultura popular, seus livros mais recentes não têm uma ligação tão direta com ela.
Em 2015, publiquei um livro que reúne alguns contos que ainda estavam guardados. Nos outros, a ligação não é tão direta –mas ela existe. No “Fragosas Brenhas do Mataréu”, as narrativas populares estão misturadas à narrativa. Tem um conto de origem portuguesa, três vindos da cultura oral indígena.
O plano é seguir esse modelo?
Não tenho um plano, para falar a verdade. Há essa pesquisa dos últimos livros. E também uma investigação sobre a relação entre texto e imagem que me interessa bastante, em que o desenho é uma possibilidade do texto, mas não é a única.
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