Adaptação de ‘Barba Azul’ resgata lado sombrio dos contos de fadas
Assim que a menina entrou no quarto escuro, seus pés sentiram o chão encharcado e o líquido vazando pelas beiradas dos passos. Os olhos demoraram a lidar com a penumbra. Quando finalmente conseguiu ver alguma coisa, percebeu que aquela água toda era, na verdade, uma piscina de sangue. E que, acima de sua cabeça, corpos de mulheres mortas estavam amarrados no teto.
A cena pode até lembrar algum livro do Stephen King ou um filme obscuro de zumbis dos anos 1970. Mas acredite: é uma história infantil.
O conto do Barba Azul apareceu no clássico “Contos da Mamãe Gansa”, publicado pelo francês Charles Perrault no século 17, e fala sobre um ricaço que se casa com uma jovem. Mais do que a história, vale notar o tratamento que ela recebe: sem concessões, redomas de vidro, quinas arredondadas ou chão emborrachado. Sem esconder a violência, a crueldade, o abuso –mesmo que, em geral, hoje seja direcionada para crianças.
A narrativa ganhou no ano passado uma adaptação em livro que respeita essa versão original, com ilustrações impactantes da argentina Anabella López.
Mas antes de falar do livro em si, que saiu por aqui pela editora Aletria, vale se debruçar brevemente sobre as histórias originais dos contos clássicos (ou contos de fadas) mais famosos.
No ano passado, escrevi para a Ilustríssima um artigo sobre edições recentes que vêm resgatando essas versões –em geral, mais macabras, sombrias sem preocupações em adaptar certas crueldades e temas para o público infantil (quem tiver interesse pode ler a íntegra aqui).
Não é só “O Barba Azul”. Vale lembrar, por exemplo, que a Rapunzel dos irmãos Grimm fica grávida do príncipe enquanto está presa na torre. Ou que, na versão do mesmo Perrault para “Chapeuzinho Vermelho”, o Lobo devora a menina no final.
Isso ocorre principalmente porque o conceito de infância mal existia à época em que essas histórias foram reunidas em livro. Até a Idade Média, a criança era integrada ao mundo dos adultos assim que conseguia independência física. O quadro só muda a partir do século 19, quando pais desenvolvem um sentimento de proteção maior em relação aos filhos. Direitos específicos, surgem só no século 20. A Declaração dos Direitos da Criança da ONU é de 1959.
Por isso, em vez de serem didáticos, os contos se aproximam das narrativas míticas e até dos aforismos, baseando-se na lógica do arquétipo e dos ritos de sociedades primitivas. É só na virada para o século 20 que eles passam a ser adaptados para os menores –na literatura e posteriormente no cinema, principalmente pelas mãos (e pincéis) de Walt Disney.
É essa atmosfera que diversas edições recentes procuraram recuperar. E que transborda de “Barbazul”, de Anabella López, edição em capa dura que adapta a narrativa do homem com riqueza imensa, barba azul e uma aura de repulsa que faz todos se afastarem dele. Sobretudo as mulheres.
Embora seja uma adaptação, o que pode ser visto já na aglutinação do título, a autora consegue resgatar no texto e nas imagens a versão original. As ilustrações são sombrias e geram uma vontade de enquadrá-las na parede de casa. A página dupla que dá forma à cena que abre este texto, por exemplo, quando a mulher descobre os cadáveres no quarto, é praticamente uma tela abstrata pintada de vermelho-sangue. Ver nesse caos os rostos de pessoas pedindo ajuda ou o olhar de uma aranha tem o poder de gerar certa angústia no leitor.
A edição, lançada originalmente em 2013 pela editora argentina Calibroscopio, não é a única que revela o lado sombrio do conto. Em 2009, a Companhia das Letrinhas publicou “O Barba-Azul”, com texto de Perrault traduzido. A extinta Cosac Naify lançou em 2015 uma versão integral de “Contos da Mamãe Gansa”.
A diferença é que, além do texto mais curto, Anabella também dá um sutil verniz feminista para a história. Já a partir da epígrafe (“Para todas nós, mulheres”), há um esforço para que o clima da narrativa mostre como Barba Azul veste a capa de abusador e como sua mulher luta para se livrar da violência e das garras do marido.
O discurso do empoderamento só escorrega em um detalhe –e aqui vai um spoiler do livro. Ao utilizar a lente de um tema fundamental e caro ao presente para enxergar um texto do século 17, pode-se forçar algumas interpretações. Como passar despercebido que a donzela só não perde o pescoço no final por causa da intervenção de seus irmãos. Todos homens.
“Barbazul”
Adaptação e ilustrações Anabella López
Tradutora Susana Ventura
Editora Aletria
Preço R$ 40,90 (2017, 36 págs.)
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