Por que ler para bebês? Leia entrevista com a colombiana Yolanda Reyes

A relação com os livros e a literatura deve ser anterior aos primeiros anos de alfabetização e à vida escolar.

É o que diz Yolanda Reyes, escritora colombiana especialista em formação de leitores. Segundo ela, bebês já devem ter contato com livros desde o nascimento, ouvindo histórias narradas em voz alta pelos adultos. “Crianças nessa idade são ávidas por escutar como canta o seu idioma. A literatura é fundamental porque é a língua em sua versão mais rítmica”, diz.

A família, a escola e as bibliotecas teriam papel importante nesse processo. “O contato com a literatura desde cedo fica guardado na memória poética e marca o desenvolvimento da criança.”

Yolanda conversou com o blog em sua última visita ao Brasil, no mês passado, quando participou do seminário “Arte, Palavra e Leitura na Primeira Infância”, em São Paulo.

 

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Folha – Qual é a importância de ler para bebês?

Yolanda Reyes – Não é que exista um subgênero literário específico para bebês. O que existe é a necessidade na primeira infância de trabalhar com palavras, sotaques, ritmos da língua. Crianças nessa idade são ávidas por escutar como canta o seu idioma. É uma necessidade vital, talvez evolutiva.

A literatura é fundamental porque é a língua em sua versão mais rítmica. Tanto que a poesia é fascinante para a criança. Ela nasce naturalmente uma ouvinte poética. Mergulha no universo da língua a partir da maneira como o seu idioma é cantado, principalmente com a poesia e as canções de ninar.

 

As canções e a literatura têm o mesmo efeito nessa fase?

É a melodia poética. Um de seus maiores exemplos são as canções de ninar. Essa música tem organização sonora e literária que prolonga o ritmo das palavras e repete uma estrutura que brinca com o aparecer e o desaparecer –como o ritmo do coração. É uma expressão que tem a ver com o que disse Federico García Lorca sobre a necessidade de a criança ser envolta por palavras, ao mesmo tempo em que sente medo de a mãe ir embora. A canção de ninar está sempre dizendo ao bebê: eu me vou e necessito que você durma, pois tenho coisas para fazer e não posso ficar ao seu lado o tempo todo. Essa estrutura poética ensina desde muito cedo, desde antes que o ser humano saiba ler ou falar, a lidar com a separação.

Mas também tem um sentido inverso. Mostra que a mãe sempre deixa suas palavras antes de partir. Esse é o primeiro ensinamento que temos sobre literatura. Você lê uma quantidade enorme de autores que já morreram. Mas, ao tomar contato com seus livros e textos, tem contato com as palavras desse escritor que não está mais aqui. É isso o que a criança aprende com esse ir e voltar das canções.

 

Quando o objeto livro passa a ter importância para o bebê?

Tudo começa pela audição. Depois vão surgindo outras maneiras de ler e de interagir com as palavras. No meu livro “A Casa Imaginária” (Global), mostro como essa interação tem início com a poesia escutada e lida em voz alta pelos pais. Em seguida, esse bebê já pode sentar e olhar algo além do rosto dos adultos. A página do livro nasce diante de seus olhos. Ele, então, interage com a mancha de texto, com as ilustrações, com o papel.

É quando surge o que chamo de triângulo amoroso. A criança está sentada no colo de alguém que ama, posicionada entre o livro e o corpo desse adulto. O bebê enxerga o livro, mas a leitura é guiada pela voz do outro. Pelo mesmo som que ele já conhece. É um outro momento. Pouco a pouco, surgem mais palavras, mais imagens e a narrativa caminha cada vez para mais longe.

 

Ao olhar livros publicados para bebês, percebemos que a maior parte dos títulos à venda não pressupõem essa interação. São livros-brinquedos, feitos de plástico ou de pano, para que a criança possa morder, puxar, molhar. Existem até livros de banho. Ou seja, é um objeto de uso autônomo, que não prevê a intermediação de um adulto. Muitas vezes, não prevê sequer a leitura.

Esse é o mercado. Um livro para bebês é muito mais do que esse objeto que conhecemos hoje como livro para bebês. Tenho uma livraria em Bogotá que se chama Espantapájaros e são poucos os livros no acervo que se parecem com brinquedos, feitos de plástico ou de materiais almofadados. São pouquíssimos. Pela minha experiência, crianças passam muito rápido por eles. Elas logo se dão conta de que são livros que se esgotam. Brincam um pouco, mas não entendem muito bem o que existe ali. O adulto também não entende –afinal, como você lê um livro desses? Esses títulos não permitem o triângulo amoroso que mencionei.

Já os outros, esses sim encantam os bebês. Pois eles são cheios de histórias que dialogam com dois leitores: o adulto e a criança. O que importa em um livro para bebês não é o material impossível de rasgar ou de estragar. Importa o material psíquico com o qual ele é feito.

 

Esse triângulo amoroso pressupõe necessariamente um adulto leitor. Algo difícil de encontrar no Brasil ou na América Latina.

Isso é verdade. Mas essa é uma característica inerente à literatura com bebês: envolver um adulto. Claro que na América Latina o problema da leitura começa com os adultos. Na região, os livros são mais um dos índices de desigualdade. A leitura faz com que você se dê bem na escola. Consequentemente, com que se torne um bom profissional e tenha uma posição favorável na sociedade e na economia. Não é assim necessariamente, mas há uma relação clara entre livro, estudo, inclusão e dinheiro.

Na América Latina, muitas pessoas não passaram por esse processo. Pensam que a leitura e a literatura não foram feitas para elas. Os livros para bebês, então, desempenham também outra função: convidam o adulto a entrar nesse universo. Isso ajuda a tirar todas as resistências em relação ao livro. Quando o seu filho olha no seu olho e pede que aquela história seja contada outra e outra e outra vez, aquilo tem o poder de quebrar barreiras. Afinal, um ser pequeno, que nunca foi à escola, diz que você é o melhor leitor do mundo. Isso é poderoso.

 

Qual é o papel da escola e do professor nessa relação?

Por um lado, há a família nesse pacto. Por outro, existem a educação inicial e as instituições culturais, como as bibliotecas. Falo sempre das trindades [risos].

 

Com as crianças ingressando na escola cada vez mais cedo, imagino que o papel do professor seja cada vez mais importante.

Em Espantapájaros, temos uma livraria e também um centro de desenvolvimento infantil, em que trabalhamos com bebês a partir de oito meses. Os professores têm um papel muito interessante. Primeiro porque incentivam a leitura e deixam os livros sempre disponíveis para que as crianças se aproximem deles. Mas, principalmente, porque eles precisam saber ler não apenas os livros ou as histórias –eles têm que saber ler os alunos e suas relações. E, então, precisam seduzir as famílias para que não existam todas essas barreiras que já comentamos em relação à literatura.

 

Para fechar a trindade, as bibliotecas devem ter espaços para bebês?

Bibliotecas para bebês não precisam ser um prédio separado. Precisam, sim, ter um acervo especial e uma adaptação física: prateleiras mais baixas, fraldário, lugar para amamentação e para estacionar os carrinhos, móveis sem quinas ou partes que possam machucar uma criança. São uma infinidade de preocupações.

Em Bogotá, surgiram grandes bibliotecas no início da década de 2000. Havia um concurso de arquitetura para construí-las e lembro que insisti para que pensassem nos bebês e nas crianças pequenas. Mas claro que não escutaram. Ainda havia uma ideia de que frequentadores dessa idade atrapalhariam a experiência dos usuários ou estragariam o acervo. Tudo mudou muito rápido, e eles tiveram depois que adaptar o espaço, criar salas específicas embaixo de escadas, fazer estruturas que não estavam previstas no projeto original.

 

Bibliotecas específicas para bebês são realidade em muitos países. Elas devem ser incentivadas? Ou o melhor modelo é criar salas infantis em instituições para adultos?

Os dois formatos são interessantes. Em uma escola ou em um centro de educação infantil, por exemplo, pode ser importante ter uma biblioteca específica para crianças menores, com acervo composto apenas por obras voltadas a esses leitores. É lá que elas terão contato com a literatura fora de casa.

Mas me parece cada vez mais fundamental que grandes bibliotecas e instituições culturais tenham salas especiais para essa faixa etária e possam integrar os bebês à sociedade e à cultura. Até porque bibliotecas precisam se abrir para novos públicos. A função delas já não é apenas oferecer obras para que você pesquise algo. Livros estão hoje nos celulares, o conhecimento está a um clique de distância. Bibliotecas se consolidam como fomentadoras de relações. E os bebês devem ter lugar nisso.

 

Bebês devem ler livros digitais?

Todos já vimos a cena, em um restaurante qualquer, da criança se divertindo com um tablet para que os pais possam comer em paz. A tecnologia interessa principalmente porque é algo que faz parte do mundo dos adultos –e a infância quer sempre ter acesso a esse universo. Digo isso porque é impossível apartá-los da tecnologia.

Porém, na primeira infância, crianças são muito concretas. Elas querem saber se seus corpos entram naquele espaço, se os braços alcançam aquela mesa, a textura daquele objeto. O corpo as ajuda a pensar sobre si mesmas. A experiência sensível, a empatia, as emoções no rosto dos outros, os cheiros, o tom de voz… Tudo isso é fundamental. Mas se perde quando substituímos o mundo concreto por uma tela. Por isso, acredito que é dever dos pais adiar o máximo possível o encontro com a tecnologia. O digital não pode substituir a experiência corporal e sensível dos primeiros anos.

 

O debate sobre a tecnologia respinga principalmente sobre os adolescentes. Há quem diga que os jovens leem pouco. Mas eles passam o dia inteiro lendo e escrevendo coisas no celular.

Essa é uma discussão que leva em consideração o suporte, mas não o conteúdo. Podemos hipoteticamente comparar um jovem que lê apenas livros de papel com outro que usa exclusivamente suportes digitais. Não acredito que o primeiro esteja fazendo operações mentais mais complexas do que o segundo. Porque aí nos falta uma informação fundamental: o que eles estão lendo?

O do papel pode estar debruçado sobre uma história completamente previsível ou com nenhuma profundidade. Já o outro pode estar lendo “O Senhor dos Anéis” no tablet ou uma saga sobre a Idade Média no celular. Quando analisamos o suporte de leitura, não podemos nos esquecer do conteúdo.

Mas, de todas as maneiras, é inegável que a concentração utilizada em um livro de papel é superior à usada em uma tela. Ainda mais em relação ao celular, onde brotam notificações de aplicativos, avisos sonoros e outras distrações.

 

Qual é o caminho para que um bebê exposto à literatura se torne um adolescente e um adulto leitor?

Trabalho com primeira infância e desenvolvimento há quase 30 anos. E não conheço um caminho certo para que isso aconteça. Não há como dizer que um bebê que ama os livros vá se tornar no futuro um adulto leitor. Sequer existe essa obrigatoriedade.

Mas o que tenho visto é que o contato com a literatura desde cedo fica guardado na memória poética e marca o desenvolvimento da criança. Essa marca pode se manifestar de diversas maneiras –inclusive no adulto que não é um leitor voraz ou frequente. Essa pessoa tem, em geral, uma confiança maior nas palavras, uma predisposição a fazer perguntas, uma curiosidade de aprender, uma relação próxima com o simbólico. Isso me interessa mais.

 

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RAIO-X

 

Nome Yolanda Reyes

Idade 58

Livros recomendados “A Casa Imaginária” (Global), “O Terror do 6ºB e Outras Histórias” (FTD) e “Uma Cama Para Três” (SM)

 


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