Livros infantis mostram a literatura transgressora de Elvira Vigna
Uma das frases mais famosas de Elvira Vigna diz:
“Linhas retas só parecem retas quando vistas de mais perto do que deveriam. Qualquer um, de binóculos em outro universo, veria que são curvas. Que transgridem.”
Vigna morreu no ano passado, vítima de um câncer aos 69 anos, no momento em que sua literatura ganhava cada vez mais atenção. Sobretudo com o livro “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” (Companhia das Letras), último publicada em vida e vencedor do prêmio da APCA de melhor romance em 2016. É dele a frase acima.
A valorização de seus últimos romances, porém, fez com que uma parte fundamental de sua obra ficasse quase à sombra: Vigna deixou uma premiada produção infantojuvenil —ganhou o Jabuti, em 1980, com “Lã de Umbigo” e teve textos e ilustrações laureados pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).
Dois de seus infantis ganharam edições nos últimos meses. “Kafkianas” (Todavia) compila releituras inéditas feitas a partir de textos de Franz Kafka. Já “Uma História Pelo Meio” (Positivo), de 1982, recebeu um novo projeto gráfico.
As duas obras até podem ser lidas de maneira independente, mas a frase que abre este texto pode servir de binóculos. Se olhados de uma forma mais ampla, “Kafkianas” e “Uma História Pelo Meio” não são retos. Fazem parte de uma mesma curva, de uma linha que vai do início da carreira de Vigna à sua última obra. Um arco que abre e fecha na produção infantil.
“Kafkianas” é formado por 20 pequenos contos de Vigna que funcionam como comentários sobre textos de Franz Kafka. O autor de “A Metamorfose” e “Carta ao Pai” tem seu universo destrinchado e recriado pela carioca, que não se limita a resumir os originais.
A partir de uma linguagem própria, ao mesmo tempo clara e tão direta que chega a ser áspera, Vigna interpreta as criações de Kafka a ponto de produzir algo novo.
“Era para ser o final de ‘Joseph K.’, parece. Kafka acabou descartando ele. Se isso for verdade, meio que concordo”, diz ela em um dos textos.
Em todos, a autora conversa com o leitor e faz com que a criança ou o adolescente se imagine no lugar das personagens. Por outro lado, não mostra qualquer preocupação introdutória e pressupõe que a obra de Kafka já seja conhecida por quem está lendo.
Algo que inevitavelmente gera ruído no universo infantil, ainda acostumado a tratar a criança como café com leite.
Algo parecido ocorre em “Uma História Pelo Meio”, que narra o encontro de uma menina e um vendedor de pássaros. Em vez de ser linear, o enredo é composto de uma história dentro da outra, como se fosse uma matrioska.
Sem que o início do livro seja de fato o início da história, muda-se de ponto de vista como um pássaro troca de poleiro. Da menina ao irmão, da ave ao vendedor. Desdobramentos que chegam a ponto de instigar quem lê a criar as próprias aventuras —algo parecido com o que a escritora fez, décadas depois, com Kafka.
Enquanto “Uma História Pelo Meio” exibe uma literatura mais infantil, mas sem ser óbvia, “Kafkianas” é mais radical e abre poucas concessões. Além de não apresentar Kafka, os capítulos falam de sexo sem cerimônias e chamam personagens de “gostosinhas” ou de “palermas”.
Mesmo as ilustrações, feitas pela própria autora, não se preocupam em passar um verniz de fofura.
Nesse sentido, “Uma História Pelo Meio” segue o mesmo caminho. As imagens e o projeto gráfico, assinado por Raquel Matsushita, subvertem o que está sendo narrado e ajudam a reinventar o texto —mais uma vez: como a própria Vigna fez com Kafka.
É como se os livros reforçassem a todo instante que a literatura não é reta. Ela é feita de curvas que transgridem.
“Kafkianas”
Autora e ilustradora Elvira Vigna
Editora Todavia
Preço R$ 49,90 (2018, 128 págs.)
Leitor avançado
“Uma História Pelo Meio”
Autora Elvira Vigna
Ilustradora Raquel Matsushita
Editora Positivo
Preço R$ 43,90 (2018, 56 págs.)
Leitor intermediário + leitura compartilhada
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