Mia Couto faz de lenda moçambicana um roteiro da Pixar

Bruno Molinero

A velha de uma aldeia tem um poder estranho: guarda espíritos dos mortos dentro da cabeça. Quando está sozinha, essas almas saem de seu crânio e ocupam o mundo real. Até que, certo dia, os moradores da aldeia descobrem o segredo. E matam a velha.

Corta.

A velha de uma aldeia tem um poder estranho: guarda espíritos dos mortos dentro da cabeça. Quando está sozinha, essas almas saem de seu crânio e ocupam o mundo real. Até que, certo dia, seu neto descobre o segredo. E, ao questionar a velha, aprende uma lição: as pessoas só morrem definitivamente quando nós as esquecemos.

A primeira versão é o resumo de uma antiga lenda moçambicana. A segunda, uma adaptação desse mesmo conto feita pelo premiado escritor Mia Couto e publicada recentemente no livro “O Pátio das Sombras” –o décimo volume da coleção “Contos de Moçambique”, da editora Kapulana, que traz ao Brasil histórias orais do país africano recontadas por diferentes autores.

No caso do novo título, mais do que ter contato com uma lenda que dificilmente cruza o Atlântico, o livro é a chance de ter contato com um legítimo Mia Couto pensado para o público infantil.
Em 32 páginas, o autor consegue apresentar um pouco da sua literatura para leitores que ainda não tiveram contato com obras que já se tornaram clássicos, caso de “Terra Sonâmbula”, ou com a recente trilogia “As Areias do Imperador”, por exemplo.

Quase tudo está lá: os jeitos moçambicanos de falar, as cores do continente africano e um certo mistério nas linhas e entrelinhas, elementos que tornaram conhecida a obra do escritor, vencedor de diversos prêmios –entre eles o Camões, a principal premiação literária em língua portuguesa.

Até que chega a hora do final inventado.

 

Ilustração de Malangatana para ‘O Pátio das Sombras’ (Divulgação)

Na versão original, os moradores da aldeia prendem a velha em uma jaula e logo depois a assassinam. Os espíritos dos mortos, sem terem como retornar para a cabeça da personagem, permanecem com os vivos, cheios de alegria, como se a mulher idosa fosse uma feiticeira maligna que os aprisionasse.

No epílogo da edição, o moçambicano escreve: “Pareceu-me que esta história se enquadra na crença generalizada nas sociedades rurais que as mulheres viúvas e velhas se convertem em feiticeiras. É esta razão que leva a mulher idosa a ser morta, no final da história. Estes valores devem ser questionados hoje e senti ser necessário reconverter esta história alterando o seu desfecho”.

Se visto por esse ângulo e em tempos de leitores sensíveis, o escritor pode ter razão. Mas, por outro lado, o conto original traz um desconforto que é artigo cada vez mais raro na literatura para crianças.

O texto consegue deslocar o leitor, falar sobre temas sensíveis, quebrar as expectativas, gerar perguntas sobre o que é certo e errado, fazer entender que o mundo não é feito só de coisas boas. Características que são matéria-prima fundamental para um bom texto literário, seja ele para qualquer idade.

Ao transformar a narrativa em algo mais confortável, Mia Couto escolhe por tabela fugir do embate e do confronto para fazer da literatura uma atividade amistosa aos leitores (e, principalmente, aos pais preocupados em proteger seus filhos de assuntos mais delicados, sem lembrar que esses temas fazem parte da vida humana).

Não à toa, com o novo desenrolar da história, “O Pátio das Sombras” se aproxima de um dos últimos filmes da Pixar.

Na animação “Viva ““ A Vida É uma Festa”, vencedora do Oscar de 2018 nas categorias melhor animação e melhor canção original, um personagem vai ao mundo dos mortos mexicano e descobre que os espíritos só desaparecem para sempre quando as pessoas se esquecem deles.

É a mesma lição do conto criado pelo moçambicano, a mesma redenção final que agradou a Academia de Hollywood e milhares de espectadores mundo afora.

Mas, se o texto opta por esse caminho mais cômodo, o mesmo não pode ser dito das ilustrações do livro, que é recheado por nanquins de Malangatana, artista moçambicano morto em 2011.

Neles, corpos de criaturas se sobrepõem, dentes afiados surgem pelos cantos, mamilos se amontoam pelas matas, formando imagens que se equilibram entre o sonho e o pesadelo. Nada fofos, os desenhos acabam se aproximando mais do assassinato do que das lições da vovó.

 

“O Pátio das Sombras”

Autor Mia Couto

Ilustrador Malangatana

Editora Kapulana

Preço R$ 39,90 (2018, 32 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 


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