Por que ‘Caçadas de Pedrinho’ é hoje um elefante em uma loja de cristais?
A entrada de toda a obra de Monteiro Lobato em domínio público, em janeiro deste ano, gerou um reboliço no mercado editorial brasileiro –sobretudo entre editoras com selos infantis, que estão prestes a produzir uma avalanche de Emílias, Pedrinhos e Narizinhos nas livrarias (falei sobre o fenômeno aqui, na Ilustrada, neste fim de semana).
Entre as histórias do pai do Sítio do Picapau Amarelo, há as mais queridinhas: caso de “Reinações de Narizinho”, “A Chave do Tamanho” e “O Picapau Amarelo”, por exemplo, que ganharão impressões de mais de uma editora, com diferentes ilustrações e tratamentos gráficos. Mas existe também um livro que hoje é encarado como um elefante em uma loja de cristais: “Caçadas de Pedrinho”.
Escrito em 1933, a história narra uma expedição formada por personagens do Sítio à caça de uma onça. Nela, Pedrinho leva uma espingarda, Narizinho escolhe uma faca, Visconde decide empunhar um sabre de madeira e Emília carrega um espeto de assar frangos. A jornada esbarra ainda com jaguatiricas, tatus, veados, gaviões e até com um rinoceronte fugido.
A aventura se tornou uma das mais conhecidas de Lobato, manteve-se viva por gerações e certamente seria um dos xodós de qualquer editora. Seria. Isso porque leituras contemporâneas enxergaram problemas em algumas passagens da narrativa, campanhas surgiram aqui e ali conta a obra, ativistas e leitores defenderam o boicote ao livro, que se tornou o título infantojuvenil mais tóxico do escritor.
A primeira questão apontada é o suposto racismo de Lobato expresso no livro –nele, Tia Nastácia é descrita como “uma macaca de carvão”. Em 2010, um parecer do Conselho Nacional de Educação recomendou a não distribuição da obra em escolas públicas ou a veiculação de uma nota explicativa. O caso chegou ao STF, na forma de um pedido para a inclusão do tal adendo, que foi negado.
“O que ninguém percebe é que, no final de ‘Caçadas de Pedrinho’, Tia Nastácia fala para a Dona Benta: ‘Negro também é gente, Sinhá’. Ela atesta a sua identidade, a sua igualdade. O próprio livro trabalha a questão. Com isso, não quero dizer que Lobato não seja preconceituoso. Ele era um típico homem dos anos 1930 que vivia em São Paulo, com todo aquele imaginário que vinha da escravidão”, afirmou Marisa Lajolo, uma das principais especialistas da obra de Lobato, em entrevista ao blog, em 2017.
A outra questão que paira sobre o livro se refere à própria caçada da onça, animal que corre risco de extinção, sobretudo na mata atlântica.
Frente a isso, as editoras se viram obrigadas a optar entre três possibilidades: colocar a mão no vespeiro, adaptar a história ou ignorar o livro –nem que seja, ao menos, neste início de domínio público.
A Companhia das Letrinhas está se preparando para relançar a obra de Lobato, com novas ilustrações, em uma coleção organizada por Marisa Lajolo. Embora possa sofrer alterações, o cronograma de lançamentos está montado até 2020–e não há sinal de “Caçadas de Pedrinho”.
“Na minha opinião, é preciso não mudar os textos. Um autor precisa ser lido em sua inteireza. O que a gente faz com o passado? Só condena? Só conhece? Em vez de esconder, é importante trazer essas ambivalências à tona e entender como elas se manifestam hoje em dia”, defende Lilia Schwarcz, que lançará uma biografia juvenil de Monteiro Lobato produzida em conjunto com Lajolo. O livro deve sair pela Companhia das Letrinhas em março.
A Autêntica também publicará os textos integrais, mas não irá se aventurar com “Caçadas de Pedrinho” neste primeiro momento. É o mesmo caso da FTD. “A editora está lançando 15 obras do Lobato nessa primeira etapa. Pouco a pouco, todos os outros livros que mantêm seu vigor e sua importância serão publicados. Ainda não há previsão de em qual etapa do projeto estará ‘Caçadas de Pedrinho’”, conta Isabel Lopes Coelho, gerente editorial de literatura da FTD.
Sobre o suposto racismo do autor, ela diz: “Por ora não tivemos esse problema, pois a seleção não incluiu obras em que, a nosso ver, essa questão se apresente de forma explícita.”
Mesmo entre os que preferiram adaptar as histórias, não há sinal de que o livro polêmico desponte no horizonte. Pedro Bandeira, autor de “A Droga da Obediência”, está preparando versões de Lobato para a Moderna –mas declarou ao blog que não deve se debruçar sobre “Caçadas de Pedrinho”.
Uma das poucas editoras que decidiram trabalhar com o título neste ano e que em breve levarão a aventura às livrarias é a Sesi-SP. Previsto para maio, “Caçadas de Pedrinho” terá ilustrações de Jean Galvão, chargista da Folha. Ao todo, 27 títulos infantojuvenis do escritor serão publicados entre fevereiro e julho deste ano, dos mais famosos a outros mais desconhecidos.
Com projeto gráfico desenvolvido por Raquel Matsushita, a coleção contará com novos ilustradores, entre eles 11 artistas portugueses.
Por enquanto, a única chance de ler a história ainda é com as edições da Globo, que detinha os direitos de publicação da obra de Lobato até o início do domínio público, em 1º de janeiro (ou, então, com as mais antigas, como as da Brasiliense). A Globinho teve duas versões, uma ilustrada por Paulo Borges e outra por Eloar Guazzelli, enquanto o selo Biblioteca Azul publicou uma edição vintage, com capa dura e ilustrações dos anos 1930 e 1940.
“Ninguém sai matando onça por causa do livro. Defender a liberdade poética do autor não é fazer apologia à matança nem endossar o racismo no país”, acredita Mauro Palermo, diretor editorial da Globo Livros.
Para as editoras, a obra de Lobato em domínio público é como uma coleção de cristais e pedras preciosas que podem ajudar um mercado editorial em mais um ano de crise –e “Caçadas de Pedrinho” é o brutamontes com potencial de quebrar tudo a sua volta.
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