Livro de Brecht para crianças parece feito sob medida para o Brasil de 2019

Bruno Molinero

O mundo era outro quando o escritor e dramaturgo alemão Bertolt Brecht começou a escrever uma série de contos curtos, ainda em 1926.

Nos anos seguintes, Brecht terminaria uma de suas peças mais famosas (“A Ópera dos Três Vinténs”, de 1928), Hitler iria se tornar chanceler da Alemanha (1933), o escritor teria que fugir do país com a família, o Exército alemão invadiria a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial (1939) e fazendo com que o mundo e o próprio autor nunca mais fossem os mesmos.

É desse caldo que nasce “Se os Tubarões Fossem Homens”, narrativa breve que foi lançada agora no Brasil na forma de um livro ilustrado para crianças e jovens pela editora Olho de Vidro, com desenhos do premiado Nelson Cruz.

A trama se desenrola a partir da pergunta de uma menina: se os homens fossem tubarões, eles seriam gentis com os peixinhos? A partir daí, Brecht destila ironia e acidez para mostrar como a sociedade europeia estava organizada àquela altura –sim, o livro foi feito no turbilhão da primeira metade do século 20, mas cairia como uma luva no Brasil de 2019.

Ilustração de Nelson Cruz para ‘Se os Tubarões Fossem Homens’, da editora Olho de Vidro (Divulgação)

Quando o alemão escreve que as escolas dos peixinhos priorizariam a formação moral e que “o futuro deles só estará garantido se estudarem com obediência”, é difícil não se lembrar do ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmando que a educação moral e cívica deve ser base do ensino brasileiro.

Se os tubarões dizem que os peixinhos devem avisar imediatamente se notarem qualquer sinal de marxismo, logo ecoam as trombetas de Jair Bolsonaro contra o “lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino” ou as falas do atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendendo o expurgo do marxismo cultural.

Um pouco mais adiante no livro, os predadores condecoram com uma medalha de algas os peixes que matam os inimigos. Já no Brasil de 2019, Bolsonaro quer isentar de punição os proprietários rurais que atirarem em invasores, o governador de São Paulo, João Doria, homenageia 11 policiais que mataram criminosos, e o governador do Rio, Wilson Witzel, diz autorizar o “abate” de criminosos portando armas pesadas e mirando “na cabecinha”.

Mesmo com uma narrativa curta, “Se os Tubarões Fossem Homens” tem outros diversos exemplos –deixo só mais um. A certa altura, os tubarões decidem que “acabaria essa história de que todos os peixinhos são iguais” e que, a partir de então, escolheriam alguns que “ocupariam cargos que os colocariam acima dos demais”. Vale lembrar que, em março, a Folha publicou um levantamento apontando que governadores eleitos nas eleições do ano passado deram cargos para mulheres, irmãs, cunhadas, primos, sobrinhos e até ex-mulher.

É claro que o livro traz também partes que hoje transparecem desbotadas, caso da insistência em um certo internacionalismo comunista e na noção de artificialidade das fronteiras nacionais.

Mas não muda um fato: a história, que começa com a pergunta da menina-personagem, termina plantando uma dúvida na cabeça do leitor brasileiro. Brecht é desses autores capazes de criar uma literatura sempre atual, que ganha novos contornos e significados com o passar do tempo? Ou é o Brasil que caminha para trás e retrocede décadas na história?

 

“Se os Tubarões Fossem Homens”

Autor Bertolt Brecht

Tradutora Christine Röhrig

Ilustrador Nelson Cruz

Editora Olho de Vidro

Preço R$ 49,90 (2018, 48 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 


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