Como falar de preconceito e relações raciais com crianças?

“Papai, que bom, porque eu sou pretinha também!”

A frase que fecha “Amoras”, livro infantil do músico Emicida, não serve de conclusão apenas para a sua história –mas também para uma série de títulos para crianças que vêm ganhando destaque ao abordar temas como racismo, relações raciais e aceitação.

Cada um traz uma estratégia e uma narrativa diferentes. Mas concordam em abordar a questão a partir da literatura, muitas vezes sem um tom professoral e didático e sem respostas fáceis. É o caso de “Amoras”.

Em sua primeira obra infantil, Emicida parte da fruta do título e de um narrador que conta para sua filha que as amoras mais pretinhas são as mais doces, as melhores que existem.

A partir daí, ele mistura figuras como Muhammed Ali, Martin Luther King e Zumbi para expandir o livro para fora do pomar e chegar à frase que abre este texto –tudo com delicadeza e um deslocamento de significados que fazem brotar nas entrelinhas uma mensagem de aceitação e, para usar uma palavra da moda, de empoderamento.

O recém-lançado “Chapeuzinho e o Leão Faminto” consegue os mesmos resultados, mas de maneira ainda mais sutil e com um diferencial que faz o livro esbarrar na genialidade: o texto não traz nenhuma palavra relacionada a cor de pele, tipo de cabelo ou qualquer outra característica física.

A narrativa é uma adaptação do conto clássico original, mas com algumas diferenças. A motivação do passeio da protagonista é levar remédios para a tia doente. No caminho, ela passa por girafas, macacos, gazelas e suricatos. Mesmo o vilão não é o lobo –quem está faminto para devorar a menina é um leão de barriga vazia.

São os elementos visuais escolhidos pelo autor e ilustrador, Alex T. Smith, que logo fazem com que o leitor situe a história na África e na savana. No lugar da menina branca, há uma protagonista negra, de cabelos crespos, cercada por uma estética e uma paleta de cores tipicamente africanas.

Como nos bons livros ilustrados, texto e imagens trazem informações próprias que, quando conectadas, transmitem uma mensagem poderosa e não subestimam a inteligência das crianças.

Cada qual a sua maneira, as duas narrativas põem meninos e adultos na roda não apenas para pensar sobre preconceitos, mas deixam diversas pontas prontas para serem puxadas e servirem de temas para debates. Na sociedade brasileira, as “pretinhas” são mesmo vistas como as melhores? Quem disse que a Chapeuzinho não pode ser negra?

Ilustração de “Nós de Axé”, da editora Aletria (Divulgação)

Outro livro que deixa pontas para conversas é “Nós de Axé”, da escritora Janaína de Figueiredo –ou melhor: são fitas que estimulam o bate-papo.

O livro parte de uma história sobre as fitinhas coloridas do Senhor do Bonfim para dar um banho de cheiro e de cultura popular da Bahia. Lá estão as mandingas, os orixás, a escadaria do Senhor do Bonfim, a cocada da avó, a capoeira e outros elementos inseridos de forma homeopática que despertam a curiosidade para um pedaço do Brasil que ainda não é visto na maior parte das escolas.

A partir daí, deixa a pergunta: por que muita gente não conhece bem a cultura que transborda das páginas? Será que existe hierarquia entre as culturas ditas erudita e popular? As perguntas vão se desamarrando como os nós das fitinhas, cada um contendo um desejo ou pedido secreto.

Mas nem todos os livros optam pela sutileza, é claro. “Meu Crespo É de Rainha”, da escritora americana Bell Hooks, por exemplo, manda as entrelinhas às favas e escancara o tema como um grito.

“Feliz com meu cabelo firme e forte,/ com cachos que giram/ e o fio feito mola se enrola,/ vira cambalhota!”, escreve a autora, em seu hino de aceitação e protagonismo condensado em 32 páginas densamente ilustradas.

É o caso também de “Que Cabelo É Esse, Bela?”, que conta a história de uma menina que adorava sair na chuva –mas tudo muda quando crianças da escola começam a falar que seu cabelo fica feio quando isso acontece. “O que é isso na sua cabeça?”, “Que cabelo é esse?”, perguntam os outros garotos para uma personagem cada vez mais amuada e reclusa.

O livro até tenta metaforizar o assunto, com uma história de que, quando os fios de Bela são molhados pelos pingos das nuvens, logo surgem cores vibrantes em suas madeixas. Mas é só um artifício para a mensagem de força e aceitação que permeia toda a narrativa, sem disfarces ou chances de o leitor interpretar outras coisas.

As duas obras preferem ir ao cerne da questão, sem papas na língua, para no fim concluírem: “Feliz com o meu crespo!” ou “Que cabelo lindo é esse, Bela?”.

Ou poderia ser ainda: “Papai, que bom, porque eu sou pretinha também!”

 

LIVROS CITADOS NESTE TEXTO

 

 

“Amoras”

Autor Emicida

Ilustrador Aldo Fabrini

Editora Companhia das Letrinhas

Preço R$ 29,90 (2018, 44 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 

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“Chapeuzinho e o Leão Faminto”

Autor e ilustrador Alex T. Smith

Tradutora Gilda de Aquino

Editora Brinque-Book

Preço R$ 41,30 (2019, 32 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 

*

 

“Nós de Axé”

Autora Janaína de Figueiredo

Ilustradora Paulica Santos

Editora Aletria

Preço R$ 35 (2018, 40 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 

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“Meu Crespo É de Rainha”

Autora Bell Hooks

Ilustradora Chris Raschka

Tradutora Nina Rizzi

Editora Boitatá

Preço R$ 35 (2018, 32 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 

*

 

“Que Cabelo É Esse, Bela?”

Autora Simone Mota

Ilustradora Roberta Nunes

Editora Editora do Brasil

Preço R$ 43,10 (2018, 32 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 


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