Design é coisa de criança em livros ‘projetados’ por Guto Lacaz
“Um grande artista é um grande homem numa grande criança.” A frase de Victor Hugo (1802-1885), escritor conhecido por clássicos como “Os Miseráveis”, serve de epígrafe para o livro infantil “O Menino Arteiro” –mas bem que poderia ser o resumo do trabalho do arquiteto Guto Lacaz na obra e em outro título relançado recentemente: “A Galinha e Outros Bichos Inteligentes”.
Os dois livros, publicados originalmente pela editora Dedo de Prosa no início dos anos 2010, acabam de ganhar novas edições pela Ôzé. E são daquelas obras que dão cócegas na cabeça, principalmente pelo trabalho de Lacaz, que assina os projetos gráficos e promove misturas que tiram a todo momento o leitor da sua zona de conforto, seja ele criança ou adulto.
“A Galinha” é uma coletânea de poemas animais escritor por Ronald Polito, cuja parte visual brinca com o nome dos bichos que dão título aos textos. Misturando técnicas de tipografia e até de lettering, Lacaz ilustra o livro utilizando apenas o nome de cada animal com diferentes fontes, tamanhos e distribuição das letras no espaço. E faz com que as palavras virem verdadeiros desenhos, como em uma brincadeira.
Assim, o “B” da borboleta se transforma em asas. Uma sequência de letras “F” lembram um exército de formigas. A maneira como são escritos os nomes do tatu-bola e da tartaruga faz com que eles ganhem os contornos dos animais. E Lacaz ultrapassa o visual para brincar até com os sons –caso da galinha, que é representada pela letra “H” e por uma linha (“agá-linha”).
Já “O Menino Arteiro” segue outro rumo. O livro é mais pop e sua parte gráfica brinca com objetos do dia a dia e com marcas que adquirem outros significados. Um cabide recebe rodinhas e vira uma espécie de carrinho, enquanto um rolo de papel higiênico com filtro de coar café e arame se transforma em um abajur todo branco. Um dos mais divertidos é a caixa de lenço que, toda rasgada, recebe o título de “A Revolta do Lenço”.
As obras conversam com o texto do autor, Gil Veloso, que fala de um menino que gostava de dar aos objetos “novos sentidos”. Como um artista incompreendido, ele arrisca performances e exibições de arte que chocam a família e os amigos que não entendem as apresentações do garoto vanguardista.
Essa trama nada óbvia e longe do tatibitate ainda presente em muitos livros infantis acaba criando partes que são complexas para um leitor em fase inicial de alfabetização e que parecem pertencer mais ao mundo do adulto. Como no momento em que o narrador caracteriza o personagem como “arguto e loquaz”, por exemplo –o que fica na linha tênue entre a ampliação do vocabulário e o mundo das palavras que costumam afastar leitores.
Mas pode ser um bom estranhamento para quem lê. Será que uma criança de oito ou dez anos vai entender o que é uma “PerformancExibição”? E como saber se não tentar? Ou melhor: será que a ideia é mesmo tudo ser entendido tim tim por tim tim?
Já os poemas de “A Galinha” têm linguagem mais acessível, sobretudo aqueles mais curtos, que geram um efeito literário mais imediato. É o caso da poesia sem título dedicada à tartaruga: “A roupa da tartaruga / nunca rasga, só enruga.” Ou do texto “Era uma vez um rato”: “O gato comeu.”
De qualquer forma, os dois livros, azeitados pela arte de Lacaz, fazem com que pais, professores e crianças olhem para as obras e pensem: “mas isso aqui é arte?” O que já é um ótimo começo de conversa e de discussão.
“A Galinha e Outros Bichos Inteligentes” e “O Menino Arteiro”
Autores Ronald Polito (“Galinha”) e Gil Veloso (“Menino”)
Projeto Gráfico Guto Lacaz
Editora Ôzé
Preço R$ 56 cada um (2017)
Leitor inicante (“Galinha”) e intermediário (“Menino”) + leitura compartilhada
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