‘Literatura indígena é sempre militante’, diz Daniel Munduruku; leia entrevista
Daniel Munduruku gosta de dizer que pegou gosto pela leitura por causa de uma aranha. Ainda criança, uma de suas obrigações era organizar a biblioteca de sua escola. Só que não importava o quanto ele limpasse: uma aranha todos os dias fazia uma teia na mesma prateleira, sobre o mesmo livro. Era só abrir a biblioteca e lá estava a trama pegajosa. Até que o garoto, intrigado, resolveu dar uma olhada na obra de que o inseto tanto gostava. E foi então que leu pela primeira vez “O Pequeno Príncipe”.
De lá para cá, Munduruku não se tornou apenas um leitor –virou também um escritor que, neste ano, completa 20 anos de carreira com diversos prêmios, entre eles o Jabuti e o da Academia Brasileira de Letras. Suas histórias para crianças e adolescentes giram em torno da temática indígena, e não apenas sobre os mundurucus, povo ao qual o autor pertence, mas sobre diferentes culturas e aldeias que existem no Brasil.
O último livro a ser lançado foi “Vozes Ancestrais”, da editora FTD. Nele, o autor reúne dez contos indígenas de dez povos diferentes, dos umutinas aos tabajaras. Ao contrário de grande parte dos título infantojuvenis, ele não traz ilustrações: é composto por fotografias em preto e branco de cada um desses povos brasileiros.
“Vozes Ancestrais” foi um dos 120 livros selecionados pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) para compor o catálogo brasileiro da Feira de Bolonha, um dos mais importantes encontros de literatura infantojuvenil no mundo, que acontece de 3 a 6 de abril na cidade italiana.
Leia abaixo entrevista com o escritor.
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FOLHA – O livro “Vozes Ancestrais” demorou mais que o previsto para sair?
Daniel Munduruku – Começamos a prepará-lo cinco anos atrás, com um projeto ambicioso. A ideia era convidar cerca de 20 narradores indígenas, sendo que cada um contaria uma história tradicional de seu povo em português e em sua própria língua. Mas ficou muito difícil de concretizar. Primeiro por causa da distância geográfica entre esses contadores. Depois porque muitas das pessoas que pensamos em convidar não tinham proximidade com a escrita. Seria necessário gravar e transcrever cada uma das histórias. Um trabalho hercúleo.
Além disso, tivemos uma série de questões sobre a autorização de uso das narrativas. Alguns convidados preferiram não ceder o direito de publicação, porque isso só seria possível após consultar o conselho de suas aldeias. Então fomos obrigados a reduzir a ideia original até chegar a dez histórias, apenas em português, mas que contemplam todas as regiões brasileiras.
Assistimos a um crescimento no número de escritores indígenas, principalmente para crianças?
Esse movimento começou há quase 20 anos. Tanto que existe um encontro nacional de escritores indígenas, que neste ano chega a sua 14º edição. Como sempre tivemos apoio da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), é natural que a maior parte desses autores passasse a se dedicar a escrever histórias para crianças e adolescentes.
Mas claro que isso vem ganhando uma proporção grande, até inesperada. Atualmente temos cerca de 35 autores indígenas que escrevem para o mercado editorial nacional –o que representa cerca de 150 títulos. Isso sem falar nos que publicam para o povo ao qual pertencem. São obras mais didáticas, que muitas vezes nem são traduzidas para o português.
Além disso, alguns editais do governo foram lançados nos últimos anos [para compras de livros infantojuvenis com temática indígena], o que, de certa maneira, contribuiu para difundir a nossa literatura. Foi criada no mercado toda uma demanda que deu preferência por títulos feitos pelos próprios indígenas.
Um desses editais foi o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação) de 2015, que previa a compra governamental de livros com temática indígena e cujo resultado nunca saiu. Houve um excesso de livros lançados pelas editoras nessa época?
Nem todos os livros lançados por indígenas são bons, obviamente. Muitos dos que foram feitos na pressa para serem inscritos nos editais acabaram tendo pouca qualidade literária e editorial.
Mas o fato é que esse movimento cresceu e continua crescendo. Mesmo com todas essas notícias não muito boas vindas do Planalto. Hoje vemos uma paralisia em torno dos editais, o que deixa muitas editoras em maus lençóis.
Só que nós não publicamos livros para vender. Nossa preocupação é ajudar a sociedade brasileira a pensar melhor sobre as questões indígenas e fazê-la conhecer as suas populações. Por isso também que os autores têm preferência pela literatura infantojuvenil, pois o melhor lugar para essa mudança de mentalidade é a escola. É ali que a gente consegue transformar o olhar.
Ainda há uma visão estereotipada dos povos indígenas na educação?
Na educação tudo é muito lento. Mas a sala de aula vem mudando a sua abordagem. É algo quase imperceptível, porque a grande mídia e a própria formação do professor acabam jogando contra isso. O educador estudou, na maioria das vezes, em bases pedagógicas antigas, que reproduzem o estereótipo e o preconceito. Esse é o grande nó, o grande gargalo dessa questão.
Esse gargalo é igual em escolas públicas e particulares?
O grande desafio de mudança de mentalidade está nos colégios públicos. Porque os particulares, a gente goste ou não, acabam se instrumentalizando muito mais para trabalhar essa e outras temáticas. Eles têm mais capacidade de formação para preparar seus educadores. Isso gera uma mudança considerável de postura.
Mas digo em linhas gerais. Há muitas escolas do governo comprometidas, com professores extremamente empenhados em fornecer aos alunos uma visão crítica sobre os indígenas, longe do estereótipo. Isso só reforça o papel da literatura nessa mudança do olhar.
E como desatar o nó dessa questão?
Uma das maneiras que se encontrou foi a lei 11.645/08 [que estipula o ensino sobre culturas afrobrasileira e indígena nas escolas]. Ela coloca o indígena como um ser da contemporaneidade e não como alguém que pertence ao passado. Só que tem gente que se incomoda com isso. A casa grande treme quando vê a senzala. As políticas de afirmação foram fundamentais para as populações indígenas e para a própria literatura, mas há um risco a elas no horizonte.
Um exemplo é esse governo e a sua reforma do ensino médio, que promoveu uma mudança na obrigatoriedade das disciplinas que tratam da temática indígena em sala de aula, como história, filosofia e sociologia –ou seja, as interfaces desse debate. Meu temor é que a gente dê um ou dois passos para trás. Eu não me surpreenderia nem mesmo que a lei fosse derrubada.
De um ponto de vista mais amplo, como vê a questão indígena sendo tratada pelo governo de Michel Temer? Houve a troca no comando na Funai, por exemplo.
Olha, não me surpreendo com nada. Esse governo faz todo tipo de retrocesso e anda para trás. Por pouco eles não nomearam um militar para presidir a Funai. Para amenizar, indicaram um pastor. Estamos entregues às raposas. Na verdade, a própria Funai já deu o que tinha que dar. Se ela não pode ser entregue nas mãos dos indígenas, é uma instituição que não tem sentido.
Daqui a pouco, o governo vai discutir a exploração mineral dentro das demarcações indígenas, leis de produção agrícola dentro de áreas de conservação e aí por diante. Eles vão fazer o mesmo que faziam os bandeirantes: caçar índio.
Qual o papel do escritor indígena nesse cenário? É o de militante?
A literatura por definição não tem que ter papel nenhum. Ela é uma manifestação criativa. Mas acho que, especificamente, a literatura indígena é sempre militante sim. O que eu faço é militância. Os livros mostram a nossa realidade, mantêm um caráter de denúncia e uma postura política aguerrida. Estamos falando de povos que sofrem há 500 anos.
Mas é bom lembrar que escrevemos para crianças e jovens. Precisamos sempre dosar as palavras para não criar no leitor uma postura defensiva ou agressiva em relação à sociedade brasileira.
Parece que há uma preocupação maior sua em escrever para adolescentes.
Eu venho pensando em me comunicar cada vez mais com a juventude. Porque aquelas crianças que leram meus primeiros livros são adolescentes ou até adultos hoje. De alguma maneira, eles precisam ter esse conteúdo renovado de uma forma mais madura e reflexiva.
“Vozes Ancestrais”
Autor Daniel Munduruku
Editora FTD
Preço R$ 46 (2016; 80 págs.)
Leitor intermediário + leitura compartilhada
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