Era Outra Vez https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br Literatura infantojuvenil e outras histórias Wed, 28 Aug 2019 18:58:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Puritanos querem transformar crianças em Rapunzel, diz Pedro Bandeira https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2019/02/02/puritanos-querem-transformar-criancas-em-rapunzel-diz-pedro-bandeira/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2019/02/02/puritanos-querem-transformar-criancas-em-rapunzel-diz-pedro-bandeira/#respond Sat, 02 Feb 2019 14:09:49 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/1de86866f-320x213.jpg https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=2765 Pedro Bandeira veste uma camisa cor-de-rosa quando abre a porta de seu flat, na região dos Jardins, em São Paulo. “Se aquela ministra Damares me visse agora, ia falar que isso é salmão. Porque sou menino e, segundo ela, não posso usar rosa”, brinca.

Autor de livros para crianças e pré-adolescentes desde os anos 1980, entre eles sucessos como “A Droga da Obediência” e “A Marca de uma Lágrima”, Bandeira conta que passou o último mês acompanhando de perto o governo de Jair Bolsonaro.

E a avaliação de quem vendeu mais de 25 milhões de exemplares para esse público é que a infância está sendo usada como escudo para uma série de medidas conservadoras, encaradas por ele como retrocessos em sua maioria.

O principal deles, na opinião do escritor, é a aversão de ministros e do próprio presidente ao ensino de educação sexual nas escolas e a abordagem do tema em livros.

“Há uma diferença entre preservar a inocência e manter a ignorância. Impedir isso significa comprometer o combate às doenças sexualmente transmissíveis e a prevenção da gravidez juvenil”, afirma.

Para ele, não foi aprendida uma lição antiga, presente em um dos contos de fadas mais famosos dos irmãos Grimm.

“Pais mais puritanos, e agora o governo, querem transformar os filhos na Rapunzel e prendê-los em uma torre, sem perceber que isso prejudica as crianças”, diz. “Eles podem não saber, mas, nas versões mais antigas, a Rapunzel fica grávida do príncipe enquanto está presa.”

Aos 76 anos, Bandeira cresceu na casa da avó católica em Santos, no litoral paulista. Fã de gibis e dos livros de Alexandre Dumas e Hans Christian Andersen, ele logo se envolveu com a cena teatral e se tornou amigo de outro santista reconhecido nos palcos —Plínio Marcos, que o incentivou a se mudar para São Paulo.

“Eu vivi esse Brasil casto, fechado, atrasado, que está ensaiando retornar. E percebi que a maluquice mora nas pessoas. Elas não querem ensinar certos assuntos nas escolas porque acham tudo imundo. Mas os puritanos é que têm a mente suja, a imundice está na cabeça deles.”

Em São Paulo, Pedro Bandeira deixou o teatro (“porque precisava jantar, né”) e passou a trabalhar na imprensa durante o regime militar. Escreveu para a revista Opinião, para o Última Hora e passou boa parte da carreira na editora Abril, ocupando o cargo de redator de publicações como Claudia e Quatro Rodas.

“A censura era cruel, quase sádica”, lembra. Ele usa como exemplo a vez em que tentou registrar o lançamento de “Histórias das Quebradas do Mundaréu”, de 1973, livro de contos de seu amigo Plínio Marcos. “O texto voltou [do censor] com todos os verbos cortados com lápis vermelho. Eu podia publicar, mas sem os verbos. Percebe a crueldade?”

No sofá de sua sala, o criador da turma dos Karas cruza os braços, mexe no bigode, à medida que vai traçando pontes entre passado e presente. “Acho que esse governo não vai ter tanto poder quanto gostaria. Como você vai censurar a internet? Impedir livros sem que os professores reclamem? O país vai tropeçar, mas não vai cair.”

E antes que alguém o chame de esquerdista, Bandeira passa a descrever os governos do PT como o de um “sindicalista que quebrou a Petrobras” e o de “uma senhora que, quando era jovem, queria instaurar no Brasil outro tipo de ditadura”, reflexos de “um oportunismo civil extremamente corrupto” que vem do fim da ditadura aos dias de hoje.

“O que nenhum governo fez foi olhar para as crianças. E perceber que nossa educação é uma vergonha, que ficamos sempre nas últimas posições nos testes internacionais.”

Foi em 1983 que ele passou a olhar mais para as crianças e deixou o jornalismo para se dedicar aos livros infantis —“A Droga da Obediência” é de 1984, “A Marca de uma Lágrima” e “O Fantástico Mistério de Feiurinha”, de 1986.

“Hoje esses livros vendem mais do que quando foram lançados. Posso dizer que vivo de direitos autorais no Brasil.”

Mas como consegue, se diz que a educação no país é tão ruim? “Porque puxo o saco dos meus leitores e dos professores. E não de ministros que que fiscalizam se estou usando rosa ou azul.”

Foto: Karime Xavier/Folhapress

 


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5 perguntas filosóficas para Mauricio de Sousa e Mario Sergio Cortella https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2018/06/12/5-perguntas-filosoficas-para-mauricio-de-sousa-e-mario-sergio-cortella/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2018/06/12/5-perguntas-filosoficas-para-mauricio-de-sousa-e-mario-sergio-cortella/#respond Tue, 12 Jun 2018 13:56:44 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/abre_cortella-320x213.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=2475 Qual é o sentido da vida? A liberdade tem limites? Há diferença entre a sabedoria de uma criança e a de um adulto?

Essas e outras perguntas foram respondidas ao blog por Mauricio de Sousa e Mario Sergio Cortella. A dupla se reuniu na noite desta segunda-feira (11), em São Paulo, para o lançamento do livro “Vamos Pensar + Um Pouco?”, segunda parceria entre o pai da Turma da Mônica e o professor, publicado pela editora Cortez.

No título, uma espécie de “Minutos de Sabedoria” com fundo mais filosófico para crianças e adolescentes, Cortella apresenta conceitos como responsabilidade, dedicação, humildade e eternidade. Já que cada capítulo (chamado de lição pelos autores) tem apenas uma página e encerra o assunto em si, é possível ler a obra em qualquer ordem –e em qualquer lugar, como o metrô ou o recreio do colégio.

Os textos são amparados por nomes que vão de Vinicius de Moraes a Franz Kafka, de Sêneca ao francês André Gide. E são todos ilustrados por personagens da Turma da Mônica, repetindo a dobradinha iniciada no ano passado no primeiro livro da série: “Vamos Pensar um Pouco?”.

A parceria vai continuar. Prevista para julho, a edição da graphic novel inspirada no personagem Horácio trará um texto de Cortella sobre o dinossaurinho filosófico de Mauricio de Sousa. Além disso, o desenhista e o professor também estarão juntos em uma apresentação na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que vai ocorrer de 3 a 12 de agosto, no Anhembi.

Confira abaixo a entrevista.

 

*

 

Como nesta terça (12) é comemorado o Dia dos Namorados, podemos começar falando de amor. Por que ele nem sempre traz felicidade?

Mario Sergio Cortella – Nenhuma emoção traz só felicidade. O amor é daqueles sentimentos que mexem com alguém. Por isso, traz perturbação, harmonia, dor. Ele não é isento de turbulências. É um sentimento humano e, portanto, não é algo insípido e sem sal. Ao contrário: amor é vulcânico. E é antecedido por algo ainda mais vulcânico –a paixão, que é um perigo, porque é a suspensão temporária do juízo.

 

Qual é o sentido da vida?

Mauricio de Sousa – Posso responder como o Horácio? A filosofia de vida dele é ajudar o próximo –e leva breque por causa disso, normalmente. De qualquer maneira, ele não se importa com o resultado desastroso. Ele fez o que gosta de fazer e se sente bem assim.

 

O título do livro é “Vamos Pensar + Um Pouco?”. O pensamento tem limite?

Cortella – Do ponto de vista operacional, como atividade mecânica do cérebro, sem dúvida. Mas como capacidade humana, não. O pensamento só é restrito pela impossibilidade humana. E essa está marcada por algo que está dentro e fora do pensamento: o sonho, que não tem limite. Sonhar é quando o pensamento desanda, é o transbordamento da racionalidade. Nosso cérebro até pode ter limites, mas nossa imaginação jamais.

Mauricio – Ainda bem!

Cortella – O Mauricio é um inventor de mundos. A princípio, apenas nós, humanos, somos capazes de inventar outros mundos desse modo.

 

Qual é a diferença entre a sabedoria da criança e a sabedoria do adulto?

Mauricio – A criança não tem peias, não tem obstáculos. Ela é livre. Por isso a gente aprende tanto com elas. Estão soltas no universo. O mundo para a criança é onde ela habita, é aquilo o que ela sente. Não existe nenhum obstáculo.

Cortella – Por isso que a literatura infantil e o gibi são decisivos. Eles potencializam essa característica da criança. Não é que substitua a imaginação. São como o quinto sabor que os asiáticos inventaram, que tem a capacidade de elevar a sensibilidade. É a mesma coisa com as histórias. Quando comecei a ler, aos seis anos de idade, principalmente as tirinhas do Bidu, claro que eu já imaginava e sonhava –mas aquilo me fazia ganhar mais fôlego. A criação e a ciência só acontecem quando o adulto não perde essa capacidade. Ele não pode ser infantil, mas não pode abandonar a imaginação sem peias da infância.

 

Ser livre é não ter peias ou amarras?

Cortella – Ser livre é ter disciplina para poder fazer o que se pode fazer, quando é possível fazê-lo. Ser livre não é fazer qualquer coisa. Podemos imaginar, mas não podemos produzir atos que possam, por exemplo, ferir outra pessoa. Não é que a liberdade seja limitada, mas ela é emoldurada pelas outras pessoas que também são livres.

Mauricio – Ser livre é usar bem o tempo. Se você usar bem, será livre.

 

“Vamos Pensar + Um Pouco?”

Autores Mauricio de Sousa e Mario Sergio Cortella

Editora Cortez

Preço R$ 30,90 (2018, 80 págs.)

Leitor intermediário

 


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Por que ler para bebês? Leia entrevista com a colombiana Yolanda Reyes https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2018/04/16/por-que-ler-para-bebes-leia-entrevista-com-a-colombiana-yolanda-reyes/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2018/04/16/por-que-ler-para-bebes-leia-entrevista-com-a-colombiana-yolanda-reyes/#respond Mon, 16 Apr 2018 15:23:01 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2018/04/sc_20180314_0507_ps-1-320x213.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=2370 A relação com os livros e a literatura deve ser anterior aos primeiros anos de alfabetização e à vida escolar.

É o que diz Yolanda Reyes, escritora colombiana especialista em formação de leitores. Segundo ela, bebês já devem ter contato com livros desde o nascimento, ouvindo histórias narradas em voz alta pelos adultos. “Crianças nessa idade são ávidas por escutar como canta o seu idioma. A literatura é fundamental porque é a língua em sua versão mais rítmica”, diz.

A família, a escola e as bibliotecas teriam papel importante nesse processo. “O contato com a literatura desde cedo fica guardado na memória poética e marca o desenvolvimento da criança.”

Yolanda conversou com o blog em sua última visita ao Brasil, no mês passado, quando participou do seminário “Arte, Palavra e Leitura na Primeira Infância”, em São Paulo.

 

*

 

Folha – Qual é a importância de ler para bebês?

Yolanda Reyes – Não é que exista um subgênero literário específico para bebês. O que existe é a necessidade na primeira infância de trabalhar com palavras, sotaques, ritmos da língua. Crianças nessa idade são ávidas por escutar como canta o seu idioma. É uma necessidade vital, talvez evolutiva.

A literatura é fundamental porque é a língua em sua versão mais rítmica. Tanto que a poesia é fascinante para a criança. Ela nasce naturalmente uma ouvinte poética. Mergulha no universo da língua a partir da maneira como o seu idioma é cantado, principalmente com a poesia e as canções de ninar.

 

As canções e a literatura têm o mesmo efeito nessa fase?

É a melodia poética. Um de seus maiores exemplos são as canções de ninar. Essa música tem organização sonora e literária que prolonga o ritmo das palavras e repete uma estrutura que brinca com o aparecer e o desaparecer –como o ritmo do coração. É uma expressão que tem a ver com o que disse Federico García Lorca sobre a necessidade de a criança ser envolta por palavras, ao mesmo tempo em que sente medo de a mãe ir embora. A canção de ninar está sempre dizendo ao bebê: eu me vou e necessito que você durma, pois tenho coisas para fazer e não posso ficar ao seu lado o tempo todo. Essa estrutura poética ensina desde muito cedo, desde antes que o ser humano saiba ler ou falar, a lidar com a separação.

Mas também tem um sentido inverso. Mostra que a mãe sempre deixa suas palavras antes de partir. Esse é o primeiro ensinamento que temos sobre literatura. Você lê uma quantidade enorme de autores que já morreram. Mas, ao tomar contato com seus livros e textos, tem contato com as palavras desse escritor que não está mais aqui. É isso o que a criança aprende com esse ir e voltar das canções.

 

Quando o objeto livro passa a ter importância para o bebê?

Tudo começa pela audição. Depois vão surgindo outras maneiras de ler e de interagir com as palavras. No meu livro “A Casa Imaginária” (Global), mostro como essa interação tem início com a poesia escutada e lida em voz alta pelos pais. Em seguida, esse bebê já pode sentar e olhar algo além do rosto dos adultos. A página do livro nasce diante de seus olhos. Ele, então, interage com a mancha de texto, com as ilustrações, com o papel.

É quando surge o que chamo de triângulo amoroso. A criança está sentada no colo de alguém que ama, posicionada entre o livro e o corpo desse adulto. O bebê enxerga o livro, mas a leitura é guiada pela voz do outro. Pelo mesmo som que ele já conhece. É um outro momento. Pouco a pouco, surgem mais palavras, mais imagens e a narrativa caminha cada vez para mais longe.

 

Ao olhar livros publicados para bebês, percebemos que a maior parte dos títulos à venda não pressupõem essa interação. São livros-brinquedos, feitos de plástico ou de pano, para que a criança possa morder, puxar, molhar. Existem até livros de banho. Ou seja, é um objeto de uso autônomo, que não prevê a intermediação de um adulto. Muitas vezes, não prevê sequer a leitura.

Esse é o mercado. Um livro para bebês é muito mais do que esse objeto que conhecemos hoje como livro para bebês. Tenho uma livraria em Bogotá que se chama Espantapájaros e são poucos os livros no acervo que se parecem com brinquedos, feitos de plástico ou de materiais almofadados. São pouquíssimos. Pela minha experiência, crianças passam muito rápido por eles. Elas logo se dão conta de que são livros que se esgotam. Brincam um pouco, mas não entendem muito bem o que existe ali. O adulto também não entende –afinal, como você lê um livro desses? Esses títulos não permitem o triângulo amoroso que mencionei.

Já os outros, esses sim encantam os bebês. Pois eles são cheios de histórias que dialogam com dois leitores: o adulto e a criança. O que importa em um livro para bebês não é o material impossível de rasgar ou de estragar. Importa o material psíquico com o qual ele é feito.

 

Esse triângulo amoroso pressupõe necessariamente um adulto leitor. Algo difícil de encontrar no Brasil ou na América Latina.

Isso é verdade. Mas essa é uma característica inerente à literatura com bebês: envolver um adulto. Claro que na América Latina o problema da leitura começa com os adultos. Na região, os livros são mais um dos índices de desigualdade. A leitura faz com que você se dê bem na escola. Consequentemente, com que se torne um bom profissional e tenha uma posição favorável na sociedade e na economia. Não é assim necessariamente, mas há uma relação clara entre livro, estudo, inclusão e dinheiro.

Na América Latina, muitas pessoas não passaram por esse processo. Pensam que a leitura e a literatura não foram feitas para elas. Os livros para bebês, então, desempenham também outra função: convidam o adulto a entrar nesse universo. Isso ajuda a tirar todas as resistências em relação ao livro. Quando o seu filho olha no seu olho e pede que aquela história seja contada outra e outra e outra vez, aquilo tem o poder de quebrar barreiras. Afinal, um ser pequeno, que nunca foi à escola, diz que você é o melhor leitor do mundo. Isso é poderoso.

 

Qual é o papel da escola e do professor nessa relação?

Por um lado, há a família nesse pacto. Por outro, existem a educação inicial e as instituições culturais, como as bibliotecas. Falo sempre das trindades [risos].

 

Com as crianças ingressando na escola cada vez mais cedo, imagino que o papel do professor seja cada vez mais importante.

Em Espantapájaros, temos uma livraria e também um centro de desenvolvimento infantil, em que trabalhamos com bebês a partir de oito meses. Os professores têm um papel muito interessante. Primeiro porque incentivam a leitura e deixam os livros sempre disponíveis para que as crianças se aproximem deles. Mas, principalmente, porque eles precisam saber ler não apenas os livros ou as histórias –eles têm que saber ler os alunos e suas relações. E, então, precisam seduzir as famílias para que não existam todas essas barreiras que já comentamos em relação à literatura.

 

Para fechar a trindade, as bibliotecas devem ter espaços para bebês?

Bibliotecas para bebês não precisam ser um prédio separado. Precisam, sim, ter um acervo especial e uma adaptação física: prateleiras mais baixas, fraldário, lugar para amamentação e para estacionar os carrinhos, móveis sem quinas ou partes que possam machucar uma criança. São uma infinidade de preocupações.

Em Bogotá, surgiram grandes bibliotecas no início da década de 2000. Havia um concurso de arquitetura para construí-las e lembro que insisti para que pensassem nos bebês e nas crianças pequenas. Mas claro que não escutaram. Ainda havia uma ideia de que frequentadores dessa idade atrapalhariam a experiência dos usuários ou estragariam o acervo. Tudo mudou muito rápido, e eles tiveram depois que adaptar o espaço, criar salas específicas embaixo de escadas, fazer estruturas que não estavam previstas no projeto original.

 

Bibliotecas específicas para bebês são realidade em muitos países. Elas devem ser incentivadas? Ou o melhor modelo é criar salas infantis em instituições para adultos?

Os dois formatos são interessantes. Em uma escola ou em um centro de educação infantil, por exemplo, pode ser importante ter uma biblioteca específica para crianças menores, com acervo composto apenas por obras voltadas a esses leitores. É lá que elas terão contato com a literatura fora de casa.

Mas me parece cada vez mais fundamental que grandes bibliotecas e instituições culturais tenham salas especiais para essa faixa etária e possam integrar os bebês à sociedade e à cultura. Até porque bibliotecas precisam se abrir para novos públicos. A função delas já não é apenas oferecer obras para que você pesquise algo. Livros estão hoje nos celulares, o conhecimento está a um clique de distância. Bibliotecas se consolidam como fomentadoras de relações. E os bebês devem ter lugar nisso.

 

Bebês devem ler livros digitais?

Todos já vimos a cena, em um restaurante qualquer, da criança se divertindo com um tablet para que os pais possam comer em paz. A tecnologia interessa principalmente porque é algo que faz parte do mundo dos adultos –e a infância quer sempre ter acesso a esse universo. Digo isso porque é impossível apartá-los da tecnologia.

Porém, na primeira infância, crianças são muito concretas. Elas querem saber se seus corpos entram naquele espaço, se os braços alcançam aquela mesa, a textura daquele objeto. O corpo as ajuda a pensar sobre si mesmas. A experiência sensível, a empatia, as emoções no rosto dos outros, os cheiros, o tom de voz… Tudo isso é fundamental. Mas se perde quando substituímos o mundo concreto por uma tela. Por isso, acredito que é dever dos pais adiar o máximo possível o encontro com a tecnologia. O digital não pode substituir a experiência corporal e sensível dos primeiros anos.

 

O debate sobre a tecnologia respinga principalmente sobre os adolescentes. Há quem diga que os jovens leem pouco. Mas eles passam o dia inteiro lendo e escrevendo coisas no celular.

Essa é uma discussão que leva em consideração o suporte, mas não o conteúdo. Podemos hipoteticamente comparar um jovem que lê apenas livros de papel com outro que usa exclusivamente suportes digitais. Não acredito que o primeiro esteja fazendo operações mentais mais complexas do que o segundo. Porque aí nos falta uma informação fundamental: o que eles estão lendo?

O do papel pode estar debruçado sobre uma história completamente previsível ou com nenhuma profundidade. Já o outro pode estar lendo “O Senhor dos Anéis” no tablet ou uma saga sobre a Idade Média no celular. Quando analisamos o suporte de leitura, não podemos nos esquecer do conteúdo.

Mas, de todas as maneiras, é inegável que a concentração utilizada em um livro de papel é superior à usada em uma tela. Ainda mais em relação ao celular, onde brotam notificações de aplicativos, avisos sonoros e outras distrações.

 

Qual é o caminho para que um bebê exposto à literatura se torne um adolescente e um adulto leitor?

Trabalho com primeira infância e desenvolvimento há quase 30 anos. E não conheço um caminho certo para que isso aconteça. Não há como dizer que um bebê que ama os livros vá se tornar no futuro um adulto leitor. Sequer existe essa obrigatoriedade.

Mas o que tenho visto é que o contato com a literatura desde cedo fica guardado na memória poética e marca o desenvolvimento da criança. Essa marca pode se manifestar de diversas maneiras –inclusive no adulto que não é um leitor voraz ou frequente. Essa pessoa tem, em geral, uma confiança maior nas palavras, uma predisposição a fazer perguntas, uma curiosidade de aprender, uma relação próxima com o simbólico. Isso me interessa mais.

 

*

 

RAIO-X

 

Nome Yolanda Reyes

Idade 58

Livros recomendados “A Casa Imaginária” (Global), “O Terror do 6ºB e Outras Histórias” (FTD) e “Uma Cama Para Três” (SM)

 


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Pais preferem pagar celular em 24 meses a comprar um livro, diz Ilan Brenman https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2018/02/15/pais-preferem-pagar-celular-em-24-meses-a-comprar-um-livro-diz-ilan-brenman/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2018/02/15/pais-preferem-pagar-celular-em-24-meses-a-comprar-um-livro-diz-ilan-brenman/#respond Thu, 15 Feb 2018 11:55:54 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2018/02/abertura-150x150.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=2184 Ilan Brenman parece estar em todos os lugares. Nascido em Israel, o escritor brasileiro tem livros traduzidos em países como Espanha, Dinamarca, Polônia, China e Coreia do Sul.

“Os livros são bem aceitos, receberam prêmios internacionais. Mas a repercussão disso no Brasil não existe. A arte para crianças ainda é vista como menor, sem importância.”, acredita.

A avaliação acontece principalmente porque, no ano passado, Brenman publicou pela primeira vez uma história inédita fora do país. O livro “Qui a Soufflé Mes Bougies?” (“Quem Assoprou as Minhas Velas?”, em português) saiu primeiro na França e já ganhou versões na Espanha, na Itália e em Taiwan –no Brasil, ainda não tem data nem editora para ser lançado.

O que não quer dizer que ele não esteja publicando por aqui também. Seu último título no Brasil é “A Menina Furacão e o Menino Esponja”, pela Trioleca (uma das ilustrações abre este texto). A história, sobre uma menina espevitada que encontra um garoto quietinho, já está de malas prontas e deve seguir em breve o destino de outras histórias do escritor. O livro tem com negociações adiantadas para ser lançado na Espanha.

Na entrevista abaixo, Brenman fala sobre o seu projeto de internacionalização e também sobre censura a livros infantis e as eleições do ano que vem.

 

*

 

FOLHA – Com 20 livros publicados fora do Brasil, é uma preocupação sua criar histórias universais que possam agradar editoras de fora?

Ilan Brenman – Ao contrário. Acho que quanto mais local melhor. O processo é sempre pensar no texto e ter uma preocupação literária. Quero que as crianças riam, tenham medo, sintam empatia –ou antipatia, mas que sintam alguma coisa. Na hora em que começar a pensar no universal, não vai dar certo. Vai ser um desastre.

 

Mesmo assim, começou a publicar livros primeiro na Europa.

Foi passo a passo. No começo, meu sonho era publicar o primeiro livro de ficção. Até que saiu “O Pó do Crescimento e Outros Contos” (ed. WMF Martins Fontes), em 2001. Depois, quis lançar minhas histórias fora do país. Saber se os livros tinham qualidade para atingir outros públicos.

Quando deu certo, coloquei o desafio de publicar primeiro lá fora. Eu já tinha contato com diferentes editoras na Europa e, no ano passado, saiu o “Qui a Soufflé Mes Bougies?” pela editora P’tit Glenat, da França. Deu supercerto e já foi traduzido na Itália, na Espanha e em Taiwan. Estamos em negociação para publicar por aqui também. Fora isso, estou conversando com a minha editora italiana para fazer uma história exclusiva para eles.

 

Em outras conversas, você já disse que esse movimento de internacionalização não foi muito comentado no Brasil. Acredita que é por se tratar de literatura para crianças?

Não foi só o fato de publicar uma história diretamente lá fora. Os livros traduzidos são muito bem aceitos, receberam prêmios –o último é da Fundación Cuatrogatos, dos Estados Unidos [“El Sapo y los Niños” e “Engaños”, traduzidos para o espanhol, receberam menções na premiação deste ano]. Mas a repercussão disso no Brasil não existe. A arte para crianças ainda é vista como menor, sem importância.

Mas, quando participo de uma entrevista em outros países ou sou publicado por lá, sempre sou apresentado como autor brasileiro. De certa forma, represento o Brasil. Se fosse um escritor para adultos que vendesse o que meus livros vendem na Europa, ia ser mais chamativo. Com certeza.

 

Por que resolveu priorizar a Europa nesse processo?

Lá os livros têm uma qualidade surpreendente, fenomenal. Quando lanço no Brasil, quero chegar o mais próximo possível daquele nível de excelência. Não tenho interesse em fazer um produto mais ou menos. Quero livros que tenham um patamar mínimo de qualidade e de estética para a criança. Na Europa, em geral, você encontra isso. Mas não tenho dúvidas de que, um dia, vamos chegar lá.

 

O livro tem uma qualidade superior e, proporcionalmente, é mais barato do que aqui.

A primeira explicação é histórica. A imprensa surge na Europa no século 15. São mais de 500 anos imprimindo livros, jornais e tudo o que você possa imaginar. No Brasil, a primeira gráfica surge no século 19. Fora isso, eles têm a possibilidade de imprimir no Leste Europeu e na China, de onde estão mais próximos do que nós. E, assim, diminuir os custos da produção.

Esses dois fatores se somam ao número de leitores, muito superior ao nosso. Isso também diminui custos. Quanto mais você imprime, mais barato sai o produto. Só que no Brasil existe um ciclo que precisa ser quebrado em relação a essa ideia. Aqui imprime-se pouco porque temos poucos leitores. Mas, com poucos exemplares disponíveis, poucos leitores são formados. Isso se retroalimenta.

 

O livro é caro no Brasil?

Se pensar proporcionalmente no preço do livro em relação ao salário mínimo, pode-se dizer que sim. Mas a questão é mais complexa. Tem muita gente que ganha um ou dois salários mínimos, mas se esforça para dar um celular ou o boné da moda para o filho. Eles têm todo o direito de dividir o presente em quinze vezes e usar o décimo terceiro para isso. A questão não é essa.

Só que é preciso dizer a esses pais que um livro é tão importante quanto esses produtos. Na Europa, a classe operária é leitora. Você encontra bibliotecas e crianças leitoras em todas as classes sociais. Eles têm clareza da importância da literatura na formação de um país. No Brasil, pouco. Em vez de pagar R$ 40 em um livro, o pai prefere gastar R$ 40 durante 24 meses para ter um celular –sendo que o aparelho vai precisar ser trocado em pouco tempo, enquanto o livro é um brinquedo que nunca fica gasto.

 

O mesmo ocorre com as faixas mais ricas da população, não?

A classe média e as mais abastadas também não valorizam o livro e a literatura. As casas não têm bibliotecas, não existem livros nos quartos das crianças. Isso diz muito sobre uma parcela da nossa elite.

 

NOME Ilan Brenman // IDADE 44 // LIVROS RECOMENDADOS “Até as Princesas Soltam Pum”, “Bocejo”, “Telefone Sem Fio”, “A Festa de Aniversário” // LIVRO FAVORITO NA INFÂNCIA “Zero Zero Alpiste”, de Mirna Pinsky  (Foto: Divulgação)

 

Qual é o caminho para reverter esse cenário?

É um processo longo, mas que está sendo trilhado. Quase todas as crianças hoje estão na escola. Já é um grande passo. Se elas estão aprendendo adequadamente, é outra questão. A próxima etapa é melhorar a escola e fazer com que os alunos estudem com qualidade. Se eles não aprenderem português direito, como vão ler livros?

 

Os programas governamentais de incentivo à leitura, principalmente os de compras de livros, deram certo?

Deram certo sim. Em mais de 20 anos de programas no nível federal, obras de qualidade que eram exibidas nas livrarias de São Paulo e do Rio chegavam aos confins da Amazônia. Existia também uma preocupação na formação de professores e de mediadores para que trabalhassem essas histórias.

Mas esses programas acabaram. E, com isso, o processo de incentivo à leitura no país foi interrompido. Os exemplares vão estragando nas escolas, as histórias não são renovadas. Os efeitos prejudiciais aparecerão no médio e no longo prazo. O que está sendo feito hoje vai mostrar efeitos daqui a 20 anos. Os adultos são um reflexo do passado.

 

A solução passa necessariamente por uma política pública do governo federal?
Não tem outra saída, ainda mais em um país com 200 milhões de habitantes. Todos os lugares do mundo que valorizam a literatura na infância fizeram isso de alguma forma. Até nos Estados Unidos. Vale lembrar a importância das bibliotecas públicas americanas.

O Temer não se diz poeta? Nunca vi o presidente falar sobre livro ou literatura. Se um cara desses não se pronuncia, se o ministro da Educação não fala ou fala pouco sobre o assunto, podemos entender que a literatura e a leitura para crianças não são uma pauta do Brasil. O que é uma pena.

 

Como vê esse tema à luz das eleições que acontecerão neste ano?
Depende muito do que vai acontecer. Se alguns candidatos ganharem, aí é que a coisa vai para o brejo. Porque não vai ser apenas a questão da compra do livro. Passa a ser também o conteúdo desses livros.

 

Você se refere ao pré-candidato Jair Bolsonaro? [Em 2016, o deputado se pronunciou contra o conteúdo do livro “Aparelho Sexual e Cia.”, da Companhia das Letrinhas, por supostamente incentivar a pedofilia ao falar para o público infantil sobre sexo]

É bem preocupante. Nossa democracia é muito nova, a liberdade de criação é recente. Alguns setores podem até não gostar de determinados conteúdos, mas não têm o direito de impedir a publicação. Isso é um aprendizado que o brasileiro precisa ter. Se você acha um livro infantil ruim, não leia aquela obra ou aquele autor para o seu filho –mas não exija a retirada dos exemplares das livrarias. Se hoje você é o autoritário, amanhã pode ser a vítima do autoritarismo. É um bumerangue.

 

Essa patrulha do conteúdo dos livros acontece em todos os campos ideológicos.

Hoje, no Brasil, temos grupos tanto da direita quanto da esquerda que se fecham e não querem mais construir pontes. É o que eu chamo de mito de Procusto. Esse personagem aparece na história do Teseu e tinha uma casa em que recebia viajantes. As visitas dormiam sempre em uma cama de ferro, que tinha um determinado tamanho. Se o cara fosse maior do que a cama, Procusto cortava as pernas dele. Se fosse menor, esticava a pessoa. Ou seja, sempre forçava o visitante a ter o tamanho da cama.

Esse é o símbolo do que vivemos no Brasil hoje. A pessoa tem a sua cama, a sua ideia. Se a realidade ou os fatos não se encaixam no tamanho daquela ideia, ela vai dar um jeito: vai cortar as pernas ou distorcer tudo. Acontece na literatura. Se alguém acha que determinado livro é depravado, vai encaixar toda a história no conceito de depravação. Se acha que desrespeita algum grupo, vai forçar a narrativa até encaixá-la nesse desrespeito.

 

Seu último livro, “A Menina Furacão e o Menino Esponja”, esbarra nesse tema, já que fala de duas crianças completamente diferentes que aprendem a conviver.

O texto nasceu porque queria falar de mim e de minhas filhas. Eu tenho uma menina furacão em casa. E fui um garoto esponja. Mas claro que esbarra em temas universais. O livro trata do diferente e de como esses opostos podem se encontrar e aprender a conviver. Alguns leitores relacionaram a história à polarização dos nossos tempos. Eu acho isso muito bonito. Isso é literatura.

 

*

 

3 LIVROS RECENTES DO AUTOR

“A Menina Furacão e o Menino Esponja”

Uma garota espevitada que não para quieta encontra um menino que é o seu oposto

Ilustradora Lucía Serrano

Editora Trioleca

Preço R$ 42 (2017, 32 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 

“O Rei Davi, o Príncipe Salomão e o Ovo Cozido”

A história judaica sobre o impasse entre um homem e o seu credor é ilustrada por uma iraniana

Ilustradora Rashin Kheriyeh

Editora Sesi-SP

Preço R$ 39 (2017, 32 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 

“Agora!”

O que será que crianças ao redor do mundo estão fazendo exatamente agora?

Ilustrador Guilherme Karsten

Editora Sesi-SP

Preço R$ 46 (2017, 32 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 


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Literatura é um ‘cavalo de Troia’ dentro da escola, diz Ricardo Azevedo; leia entrevista https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/12/07/literatura-e-um-cavalo-de-troia-dentro-da-escola-diz-ricardo-azevedo-leia-entrevista/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/12/07/literatura-e-um-cavalo-de-troia-dentro-da-escola-diz-ricardo-azevedo-leia-entrevista/#respond Thu, 07 Dec 2017 12:17:51 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2017/12/ricardoazevedo-180x90.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=1982 Um cavalo de Troia, que esconde dentro de si elementos capazes de confundir e de tirar os alunos da zona de conforto.

É com essa imagem que o escritor Ricardo Azevedo fala sobre a relação entre literatura e sala de aula. “Tem que entrar na escola para bagunçar um pouco, trazer ideias que não são esperadas, mostrar conflitos e contradições humanas”, diz.

Conhecido por pesquisar sobre a cultura popular e os contos orais ao longo de mais de 30 anos, Azevedo ganhou diversos prêmios e publicou dezenas de livros para crianças (caso de “Contos de Enganar a Morte”, da editora Ática, que tem uma das ilustrações publicadas na abertura deste texto).

Agora, o autor se debruça sobre as histórias para adolescentes. Lançado pela Ática em 2013, “Fragosas Brenhas do Mataréu”, por exemplo, fala sobre um jovem de 15 anos que precisa encarar a morte da mãe no século 16. “Caderno Veloz” saiu pela Melhoramentos em 2015 e propõe um diálogo entre poesia e ilustração.

O autor e ilustrador acaba de finalizar uma nova obra sobre o período colonial brasileiro, também para um público mais velho. “Quero conversar com esses caras.”

Leia abaixo a entrevista.

 

*

NOME Ricardo Azevedo // IDADE 68 // LIVROS RECOMENDADOS “Fragosas Brenhas do Mataréu”, “O Moço que Carregou o Morto nas Costas” e “Esqueleto, Tomate e Pulga” // LIVRO FAVORITO NA INFÂNCIA coleção Tesouros da Juventude

 

Folha – Quando combinamos esta conversa, disse que gostaria de falar mais sobre seus livros juvenis do que sobre os infantis. Por quê?

Ricardo Azevedo – Os juvenis andam me interessando bastante. Quero conversar com esses caras, escrever para eles. Meus últimos trabalhos são todos para um público mais velho. Acabei há pouco tempo um texto que parte da mesma pesquisa que usei no “Fragosas Brenhas do Mataréu” [Ática, 2013] . Fiquei muito interessado no assunto e continuei lendo e estudando mais sobre o período colonial brasileiro. Algumas ideias que não tinha usado, que acabaram sobrando na preparação, entraram nesse novo livro.

 

Tem previsão de lançamento?

Ainda não. Tenho que fazer uma boa revisão, ter tempo para olhar.

 

Como conquistar o adolescente? Muita gente diz que o jovem não lê. Ou que ele só se interessa por livros de youtubers, por exemplo.

Não sei, não consigo ver as coisas por esse ângulo. Talvez eu seja um alienado total. Para começar, acho faixa etária um erro, uma besteira. Serve só para as aulas de ginástica. Do ponto de vista da leitura, falar sobre pessoas de quinze anos como se elas formassem um grupo homogêneo é quase ridículo. É uma mercantilização da vida. Dividir as coisas em “mundo jovem”, “mundo adulto”, “mundo da terceira idade” é uma maneira de criar mais produtos. No fundo, são todos seres humanos.

E escrevo pensando nisso. Claro que, provavelmente, um leitor de dez anos não vai conseguir ler o “Fragosas” ou esse novo. São maiores, têm vocabulário mais complexo, estão inseridos em um período histórico brasileiro que não é todo mundo que domina. Demanda mais experiência –experiência de vida mesmo. Mas não me preocupo com faixa etária. Não existe um assunto para jovens. Assim como não existe um tema para crianças. Meus livros menores trazem assuntos pelos quais os adultos também se interessam.

 

O mercado não costuma pensar como você.

O mercado é refém da faixa etária por causa da escola, que é a grande consumidora de livros para crianças e jovens no Brasil. Mas livro didático é uma coisa, literatura de ficção é outra. A literatura é um cavalo de Troia. Tem que entrar na escola para bagunçar um pouco, trazer ideias que não são esperadas, mostrar conflitos e contradições humanas.

 

Quais são os temas da literatura?

Existem assuntos que não vão ser discutidos em aula espontaneamente. A paixão entre duas pessoas, por exemplo, não é explicada pelo professor. Mas é um assunto que diz respeito a todos nós, da infância até os 200 anos de idade. A literatura pode abordar isso. Os conflitos também. Se alguém gosta de duas coisas ao mesmo tempo e elas são opostas, isso é literatura. E pode virar um baita assunto para a sala de aula.

 

Os pais e professores andam protegendo as crianças de temas mais complexos de uma forma exagerada?

Uma criança que sai à rua vê pessoas comendo lixo na esquina de casa. Os conflitos estão dados. O mercado não vai impedi-los de existir nem de serem vistos. A questão é: como lidar? Não podemos simplesmente jogá-los no colo de alguém com dez anos de idade. Ele está impotente. Temos que tomar cuidado de apresentar a realidade de maneira com que a criança tenha pelo menos esperança de mudar esses problemas.

 

É função do livro abordar essas temáticas?

Eu não vejo o escritor como um profissional que fica procurando qual é a demanda ou o assunto do momento. Isso parece coisa de livro didático. Ele é alguém que está desenvolvendo um trabalho. Se essa trajetória vai passar por um assunto polêmico, acho que ele deve trazê-lo à tona. Mas tem que existir uma consistência dentro da obra. Ou o autor pode virar uma espécie de redator das demandas sociais –sejam as do público mais politicamente correto ou as do politicamente incorreto. Se é para fazer isso, prefiro mudar de profissão.

 

É o caso da sua pesquisa com cultura popular.

É um trabalho que segue desde os anos 1980. Em muitos dos contos populares aparecem figuras como diabos e bruxas. Sei que algumas religiões não aceitam esse tipo de coisa. Mas eu não posso fazer nada. Respeito, mas não vou deixar de fazer o meu livro.

 

Como viu os recentes casos de ataques a obras de arte, como a mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre, a performance “La Bête”, no MAM-SP, e a exposição sobre sexualidade, no Masp?

Existe um ponto que não está sendo discutido: o que é uma obra de arte? Arte é um trabalho que demanda uma pesquisa de longa duração, uma especulação estética e uma série de outros ingredientes. Muitas vezes, a gente fica sem critério para saber se aquilo é arte. Isso só confunde a população que não é informada sobre o assunto e que não tem costume de visitar museus.

É claro que sou contra a censura. Só faltava essa agora, a censura voltar. Mas vejo um descaso muito grande na discussão artística. As pessoas querem aparecer, tirar selfies em frente à obra. Mas não querem investigar, se aprofundar, ver se por trás daquilo que está exposto há uma pesquisa do artista. Vivemos uma época de autocertificação. Quem diz que isso é uma obra de arte? Sou eu? Aí fica complicado, porque vira qualquer coisa.

 

Voltando à cultura popular, seus livros mais recentes não têm uma ligação tão direta com ela.

Em 2015, publiquei um livro que reúne alguns contos que ainda estavam guardados. Nos outros, a ligação não é tão direta –mas ela existe. No “Fragosas Brenhas do Mataréu”, as narrativas populares estão misturadas à narrativa. Tem um conto de origem portuguesa, três vindos da cultura oral indígena.

 

O plano é seguir esse modelo?

Não tenho um plano, para falar a verdade. Há essa pesquisa dos últimos livros. E também uma investigação sobre a relação entre texto e imagem que me interessa bastante, em que o desenho é uma possibilidade do texto, mas não é a única.

 


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Bruna Beber traduz 11 livros infantis em um ano, de Dr. Seuss a Lewis Carroll; leia entrevista https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/11/08/bruna-beber-traduz-11-livros-infantis-em-um-ano-de-dr-seuss-a-lewis-carroll-leia-entrevista/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/11/08/bruna-beber-traduz-11-livros-infantis-em-um-ano-de-dr-seuss-a-lewis-carroll-leia-entrevista/#respond Wed, 08 Nov 2017 13:55:57 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2017/11/beber_capa-180x90.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=1879 Quando um livro infantil chega às livrarias, o mais comum é ver na capa e em letras garrafais o nome do autor e o de quem fez as ilustrações. Mas, no caso dos títulos internacionais, existe uma figura pouco lembrada e que pode ser determinante para a qualidade da história: o tradutor.

“Não sei dizer o quanto é tradução e o quanto é algum tipo de criação. As coisas se misturam, é sempre um equilíbrio”, diz a escritora Bruna Beber, que traduziu no último ano 11 obras para o público infantojuvenil, muitas delas de nomes fundamentais como Dr. Seuss e Lewis Carroll.

Do primeiro, foram sete livros para a Companhias das Letras. Estão nas livrarias “O Lorax”, “Horton Choca o Ovo” e “O Gatola da Cartola”. No fim do mês, é a vez de “Como o Grinch Roubou o Natal”. Em 2018, serão publicados “A Guerra com Pão de Manteiga” (fevereiro), “Ah, os Lugares Aonde Você Irá!” (março) e “Ah, os Pensamentos que Você Pode Pensar” (abril). Lorax e Grinch são mais conhecidos no Brasil por causa dos filmes inspirados em suas histórias.

De Carroll, saiu pelo selo infantojuvenil da Record “A Caça ao Snark”, que o criador de “Alice no País das Maravilhas” escreveu no século 19. Além desses, há mais obras infantis para a Intrínseca previstas para 2018. Isso sem contar “Os Molambolengos”, de Evangeline Lilly, que saiu no Brasil pela editora Aleph em 2015.

Em comum, são todas obras em verso, o que foi um dos motivos para que Bruna tenha sido escolhida para as traduções. Seu último livro de poemas, “Ladainha”, foi lançado em junho pela Record.

Leia abaixo entrevista com a poeta e tradutora sobre literatura para crianças, traduções e a relação desse trabalho com a poesia.

 

*

NOME Bruna Beber // IDADE 33 // LIVRO FAVORITO NA INFÂNCIA “O Menino Maluquinho”  (Foto: Elisa Mendes/Divulgação)

 

FOLHA – Como surgiu a proposta de traduzir sete livros do Dr. Seuss?

Bruna Beber – Veio da própria Companhia das Letras. O Dr. Seuss é uma referência nos Estados Unidos, mas não é muito conhecido por aqui. Está longe de ser a referência que é lá fora. Queriam uma nova tradução para os títulos que já estavam no catálogo, além de lançar alguns inéditos. Como são sete ao todo, tive que entregar um livro por mês.

 

São livros que se preocupam muito com a linguagem. Não deve ter sido fácil manter esse ritmo de tradução.

Foi pesado. Principalmente no começo. Depois você vai se acostumando, se ambientando com o universo que ele criou. Comecei com “O Lorax”. É um livro dos anos 1970, mas que poderia ter sido escrito ontem. Além da tradução, fiz também as quartas capas. São sete poemas no fim dos livros. Não estão assinados, mas fui eu que produzi.

 

Já tinha entrado em contato com a obra do Seuss?

Não muito. Por isso foi maravilhoso, tudo era novo. E foi dando a responsabilidade de fazer algo à altura dele. Pesquisei muito, vi todos os filmes…

 

Os filmes ajudaram na tradução?

Foi mais por curiosidade. Eles mudam um pouco as histórias, criam protagonistas, heróis, namoradinhos. É legal ver isso. Mas “O Lorax” até que respeita um pouco do texto original.

 

Como é traduzir para o português o vocabulário do Seuss, que adorava inventar palavras, brincar com trocadilhos, fazer diferentes rimas?

É um vocabulário incrível, cheio de termos que ele criou. Fui entrando nesse mundo como uma criança. Como ele era muito inventivo, os livros não são nada engessados e me deram a oportunidade de recriar. Fiquei bastante à vontade em trazer o universo para o português do meu jeito. Foi uma aposta que coloquei em prática logo no primeiro –se a editora reclamasse ou quisesse algo mais fechado, eu daria um passo atrás nos outros seis. Tentei colocar tudo o que pudesse deixar a história mais louca.

 

Como essa loucura é captada pelas crianças? Foi uma preocupação?

Não tenho filhos, mas tenho crianças por perto. E a grande maioria é completamente louca. Tudo o que você apresenta, mesmo que seja algo novo, é captado.

Fiz o teste com as filhas da minha prima, que moram no Rio. Uma tem seis anos e a outra tem quatro. Deixei as duas lendo “O Lorax”. Estava morrendo de medo, sem saber se os termos que inventei estavam claros. Queria ver se as “trufulárvores” que dão “frútulas” iriam dar um nó na cabeça delas  A mais velha terminou o livro em 40 minutos e adorou. Morreu de rir. E ficou me questionando por que traduzi aquilo daquele jeito, por que tinha escolhido certas palavras, como era o original, o que queria dizer.

 

Interessante, porque nem sempre as crianças percebem que existe um tradutor por trás do livro.

Enquanto traduzia, sempre pensava que gostaria de ter lido livros muito mais inventivos quando eu era criança. Tudo era muito careta. Minha ideia sempre foi traduzir de modo que os livros continuassem a ser instigantes como são no idioma original, pensando na menina curiosa que eu era, que certamente iria achar os trocadilhos engraçados.

 

Quanto de criação existe na tradução?

Nunca quis me distanciar do original. Você não pode perder as belezas que o autor já deu. Porque, aí, acho melhor escrever um livro infantil próprio, né?

Por outro lado, algumas coisas precisam ser recriadas. Não tem jeito: você precisa trazer certas referências para o seu leitor. Precisa ser divertido para uma criança do Brasil, que fala português. Eu não sei dizer em termos de porcentagem o quanto é tradução e o quanto é algum tipo de criação. As coisas se misturam, é sempre um equilíbrio. Tento não sacanear o autor, mas também não quero perder a minha poética. Não deixa de ser um trabalho autoral.

 

Como assim?

Lembro, por exemplo, que demorei para achar uma solução para o lugar onde o Lorax vivia, que no original é “Lifted Lorax”. Acabei optando por “Logradouro do Lorax”. Muito pela sonoridade. Se ele usa palavras que rimam ou coloca dois termos inventados que começam com a mesma consoante, por exemplo, eu tento manter isso.

Ilustração do livro “Como o Grinch Roubou o Natal”, que será lançado no fim de novembro (Divulgação)

 

Existia já uma tradução do Seuss anterior à sua, publicada pela própria Companhia das Letras. Chegou a lê-la?

Li, claro. No começo fiquei apreensiva, mas depois percebi que aquilo era uma fonte para mim. O que achava legal, mantive de alguma forma. E procurei novas soluções para o que, na minha opinião, não funcionava bem. Cada um tem uma compreensão do texto.

 

Outro autor que traduziu foi o Lewis Carroll. Como foi passar para o português um texto do pai de “Alice no País das Maravilhas”?

É outro louco, né? “A Caça ao Snark” é bem diferente dos livros do Seuss. É uma história que começa num lugar, vai para outro completamente diferente, nada tem muita explicação. Como tudo se passa num barco, tive que pesquisar nomes técnicos, entender os meridianos, saber de tratados e de um monte de termos que não conhecia antes. A rima também é mais rebuscada. O Carroll faz rimas internas no verso. Mas é muito engraçado.

 

Demorou mais para traduzir?

Um pouco mais. E não consegui colocar métrica em tudo. Para fazer isso, tinha que ser o Paulo Henriques Britto [poeta que traduziu nomes como Charles Dickens, Elizabeth Bishop, William Faulkner, entre outros].

 

Como ser poeta ajudou no processo?

A poesia te leva ao cerne da palavra, a destrinchar os sentidos. O Seuss faz muito isso. Embora não escreva como esses autores, eles têm um universo oral que me interessa muito –principalmente o Carroll. Mesmo que eu não escreva rimando, o ritmo é importante nos meus livros.

 

E o seu livro infantil?

Tenho o “Zebrosinha” [Galerinha; R$ 27,90], que curiosamente é em prosa. Adoraria fazer outros, mas acho difícil escrever para crianças. A cabeça delas é muito diferente, tudo é inesperado e despropositado. Para escrever à altura de uma criança, você precisa ser muito bom.

 

Por causa da forma ou do conteúdo?

A gente sempre fica na dúvida se a criança vai entender, né? Ou acaba achando que aquilo não é bem um tema infantil. Mas, no fundo, não é o adulto quem decide isso. Acaba sendo difícil cativar esse leitor.

 

Cativar um adulto é mais fácil?

O leitor adulto é culpado. Ele quer terminar o livro. Se achar ruim, quer descobrir por que não gostou. Quer saber se a culpa é dele ou do autor. Existe uma investigação como leitor.

A criança não está nem aí. Se ela não gostar, larga a história. E ponto final. Fora as questões de mediação de leitura. Os livros não chegam diretamente. É um caminho indireto. As obras que mais marcaram a minha infância foram todas mostradas por alguém que sentou comigo, disse que aquele texto era muito legal, me conquistou como leitora, fez com que me apaixonasse. O livro pode ser ótimo. Mas, sem esse papel de mediação, ele não chega a lugar nenhum.

 

“O Lorax”

Autor e ilustrador Dr. Seuss

Editora Companhia das Letrinhas

Preço R$ 39,90 (2017; 80 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 

“Horton Choca o Ovo”

Autor e ilustrador Dr. Seuss

Editora Companhia das Letrinhas

Preço R$ 39,90 (2017; 72 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 

“O Gatola da Cartola”

Autor e ilustrador Dr. Seuss

Editora Companhia das Letrinhas

Preço R$ 39,90 (2017; 80 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

 

“Como o Grinch Roubou o Natal”

Autor e ilustrador Dr. Seuss

Editora Companhia das Letrinhas

Preço R$ 39,90 (2017; 64 págs.)

Leitor iniciante + leitura compartilhada

Lançamento 21/11

 

“A Caça ao Snark”

Autor Lewis Carroll

Ilustrador Chris Riddell

Editora Galera Junior

Preço R$ 44,90 (2017; 96 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 


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‘Crianças são gênios do surrealismo’; leia entrevista com Liniers, que lança livro infantil no Brasil https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/09/11/criancas-sao-genios-do-surrealismo-leia-entrevista-com-liniers-que-lanca-primeiro-livro-infantil/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/09/11/criancas-sao-genios-do-surrealismo-leia-entrevista-com-liniers-que-lanca-primeiro-livro-infantil/#respond Mon, 11 Sep 2017 18:26:05 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2017/09/linierscapa-180x101.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=1733 Na edição de sábado (9) da “Ilustrada”, escrevi sobre o livro “Os Sábados São como um Grande Balão Vermelho”, primeira publicação infantil do argentino Liniers, que chega nesta semana às livrarias do Brasil pela editora V&R (quem perdeu pode ler o texto na íntegra aqui).

Conhecido principalmente pela série de tiras “Macanudo”, o cartunista cria na obra uma história em que duas irmãs não se abatem com a chuvarada em pleno sábado e decidem brincar ao ar livre, devidamente munidas de guarda-chuvas, capas e um jeito próprio e infantil de ver as intempéries –as do clima e também as da vida.

Liniers, 43, vive nos Estados Unidos desde 2016, onde participa de uma residência em Vermont, no Center for Cartoon Studies. Ele conversou com o blog por e-mail. Confira abaixo.

 

*

 

Por que decidiu publicar um livro para crianças agora?

Liniers – Eu gosto muito dos livros infantis. É um erro subestimar a importância dessas obras, que são a base da arquitetura literária que teremos para os restos das nossas vidas. Quando crio um livro, meu interesse é gerar alguma emoção no leitor. No caso de uma criança, quero que essa emoção faça com que ela busque outro livro, tenha essa experiência com outro autor. E fazer com que ela leia para o resto de sua vida.

 

A história também tem uma relação muito próxima com suas filhas. Quantos anos elas têm hoje?  

Estão com nove, sete e quatro anos. Morar com elas é extremamente estimulante. É como conviver com gênios do surrealismo e da comédia. Com Chaplin, Buñuel e Grouxo. Nunca se sabe o que pode acontecer. Faço até algum esforço para não desenhá-las todo o tempo, mas às vezes não consigo evitar.

A infância é uma época da minha vida onde sempre existiu muita curiosidade –e acho que nunca a deixei completamente. Essa é uma qualidade presente em todos os artistas que conheço. A de ser nós mesmos, antes que a educação, a religião e a ideologia nos transformem.

 

Qual a diferença entre fazer um livro e criar tirinhas para jornal?

É uma questão de estrutura. As tiras são pensamentos aleatórios, com uma imediatez que força ao autor entregar-se mais à intuição –e, de vez em quando, ao retumbante fracasso. Tenho a ideia em um dia e, no seguinte, está reproduzida centenas de milhares de vezes no jornal. Já nos livros posso ser mais cuidadoso e pensar um pouco mais em cada aspecto da obra.

 

Como acredita que os leitores de ‘Macanudo’ receberão o livro infantil?

Eles geralmente têm uma ponte bem construída até a infância. Acho que vão se surpreender com a visão lúdica da vida. Existem livros que têm diversos níveis de leitura e que, dependendo do período da vida em que você decide lê-los, apresentam significados diferentes. Gostaria de pensar que isso acontece com os meus.

 

Quais autores infantis usou de referência para o livro?

Para mim, é importante que o autor não subestime a criança. O fato de enxergarem o mundo de um ponto de vista mais baixo não significa que elas sejam idiotas. Alguns autores conseguem isso e surpreendem sempre. Entre os que mais gostam de ler com as minhas filhas são Maurice Sendak, Mo Willems, Roald Dahl, Tove Jansson, Tomi Ungerer, Isol, Shel Silverstein.

 

“Os Sábados São como um Grande Balão Vermelho”

Autor Liniers

Tradutor Fabrício Valério

Editora V&R

Quanto R$ 34,90 (2017; 48 págs.)

Leitor Iniciante + leitura compartilhada

 


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‘Adolescente está lendo cada vez mais’, diz Thalita Rebouças; leia entrevista com a autora https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/06/09/adolescente-esta-lendo-cada-vez-mais-diz-thalita-reboucas-leia-entrevista-com-a-autora/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/06/09/adolescente-esta-lendo-cada-vez-mais-diz-thalita-reboucas-leia-entrevista-com-a-autora/#respond Fri, 09 Jun 2017 13:13:24 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2017/06/FotorCreated-180x65.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=1572 Os 2 milhões de exemplares vendidos no Brasil e os mais de 20 livros lançados deixaram o mundo da literatura pequeno –e fez Thalita Rebouças invadir o cinema. Já são seis filmes confirmados, todos inspirados em suas obras. “É Fada!”, baseado em “Uma Fada Veio me Visitar”, estreou com a youtuber Kéfera no papel principal. “Fala Sério, Mãe!” deve chegar às telas no início de 2018, com Ingrid Guimarães e Larissa Manoela no elenco.

Mas a autora não deixou a literatura de lado. Ela acaba de lançar  “Confissões de um Garoto Tímido, Nerd e (Ligeiramente) Apaixonado”, criado como um desdobramento do também longo título “Confissões de uma Garota Excluída, Mal-Amada e (um pouco) Dramática”, lançado em 2016. No “spin-off”, Davi tenta deixar a timidez de lado e se aventurar pelo campo da astrologia.

“As vendas de direitos dão uma ajudinha no orçamento. Mas, muito antes de fazer filme, eu já estava vivendo de literatura. Da venda de livros mesmo”, diz Rebouças. Por isso, não tem dúvidas de afirmar: “Hoje o adolescente sente vergonha de dizer que não gosta de ler”.  “Ele está lendo cada vez”, completa.

Abaixo, ela fala sobre livros, internet e o rótulo “literatura de mulherzinha”. Confira.

 

*

NOME Thalita Rebouças // IDADE 42 // LIVROS RECOMENDADOS “Ela Disse, Ele Disse”, série “Fala Sério!”, “360 Dias de Sucesso” // LIVRO FAVORITO NA INFÂNCIA “Marcelo, Marmelo, Martelo”, de Ruth Rocha (Foto: Faya/Divulgação)

 

FOLHA – Hoje você vive de literatura?

Thalita Rebouças – Graças a Deus. Vivo não só dos livros, mas do que a literatura me trouxe. Peças, filmes… As vendas de direitos dão uma ajudinha no orçamento. Mas, muito antes de fazer filme, eu já estava vivendo de literatura. Da venda de livros mesmo.

 

Isso quebra a ideia de que o adolescente não lê no Brasil?

Com certeza. Adolescente está lendo cada vez mais. E as editoras estão oferecendo um catálogo mais diverso. Quando eu entrei na Rocco, por exemplo, eles tinham só os livros do Harry Potter, os de outra autora e os meus. Para esse público,  era só isso. Dezessete anos depois, o mercado editorial cresceu, se especializou, descobriu novos autores.

 

Ler deixou de ser coisa de nerd?

Quando comecei, a coisa que mais ouvia era: “Ler é chato, odeio livros”. Hoje o adolescente sente vergonha de dizer que não gosta de ler.

“Harry Potter” foi o grande responsável por essa mudança. Mostrou que não importa o tamanho da história ou se ela não tem ilustrações –se é boa e bem escrita, vai ser lida. A J.K. Rowling ajudou muitos novos autores a surgirem. Inclusive eu, sou muito grata a ela.

 

Dá tempo de conhecer os novos autores?

Tento acompanhar os lançamentos, nem sempre dá tempo. Mas já li Paula Pimenta, Laura Conrado… O contato com elas é ótimo. Ser escritora é uma profissão muito solitária.

 

O livro novo, “Confissões de um Garoto Tímido, Nerd e (Ligeiramente) Apaixonado”, foi uma sugestão dos leitores?

Foi sim. O “Confissões de uma Garota Excluída, Mal-Amada e (um pouco) Dramática” foi o primeiro livro em que falei de verdade sobre bullying. Ele é quase um personagem. O Davi e o Zeca, personagens da história que são amigos da Tetê e tiram essa protagonista do desconforto de encarar uma escola nova, acabaram ganhando o coração dos leitores [no livro, Tetê muda de casa com a família e precisa trocar de colégio, de amigos e superar uma desilusão amorosa]. Todos me pediram uma história sobre os dois.

Achei que seria mais divertido falar do Davi. Gostei de escrever sobre um menino que fala como um velho, tratar de corações partidos. Chorei muito escrevendo.

 

Quanto tempo demora para escrever um livro como esse, de 304 páginas?

Deu muito trabalho. O Davi sempre amou estrelas e se interessou por astrologia. Por isso ele decide fazer um curso sobre o tema –e eu tive que entrar nesse curso com ele. Pedi a consultoria de uma astróloga, que me ajudou em vários momentos. Perdi as contas de quantas mensagens mandei para ela de madrugada, perguntando o que um canceriano com lua em tal casa faria em determinada situação [risos].

Ela chegou até a fazer o mapa astral do Davi. O que é um pouquinho o meu mapa também, porque nós nascemos no mesmo dia: 10 de novembro. Foi muito interessante construir um personagem sabendo qual é o signo dele, o ascendente, a lua, a casa oito. E, a partir disso, escrever as minhas percepções.

Levei oito ou nove meses no processo de pesquisar, escrever, revisar. Foi um dos mais demorados.  

 

Decidiu tratar desses assuntos porque astrologia está na moda?

Adolescente ama signo. Pensei: as meninas vão pirar se eu falar disso. Quando perguntei nas redes sociais sobre o que elas achavam… Nossa!

 

Como é essa interação com os leitores pela internet?

Eu e a internet nos damos superbem. Faz muita gente se aproximar de mim, conhecer os meus livros. Na época do livro da Tetê, pedi no Snapchat histórias de bullying. Foram mais de 5.000 relatos. Eu mesma leio e respondo tudo.

 

É possível ser escritor sem ser ativo nas redes sociais?

Claro. Mas é muito natural para mim. Estou conectada desde o começo. A facilidade de conversar com o leitor que mora no Maranhão, por exemplo, é fascinante.

 

Mas tem a questão do seu público também. Você está na internet porque o adolescente está 100% do tempo lá.

Exatamente. Não dá para estar off-line. O doido é que muitas leitoras que falam comigo pelas redes sociais ficam tão nervosas quando me encontram pessoalmente que ficam completamente mudas. Aí chegam em casa e me mandam um textão pelo computador ou pelo celular.

 

Após 17 anos de carreira, os seus primeiros leitores já são adultos, talvez muitos até tenham filhos. Por que seus livros não envelheceram com eles? Por que continuar escrevendo para adolescentes?

Acho que tenho 14 anos de maturidade [risos]. Certa vez, fiz um evento com a Ruth Rocha em São Paulo e perguntaram por que ela escrevia só para crianças. A resposta foi: “Porque, para mim, não faz sentido se não for para crianças ”. É lindo. E eu tenho isso com os adolescentes. Sei que eles estão crescendo, envelhecendo, procurando outras coisas. Mas acho incrível fazer parte de uma fase da vida tão complicada, que é a adolescência. Realmente não consigo pensar em histórias que não sejam para eles.

 

É para essa menina de 14 anos que você escreve?

Sempre penso nessa adolescente que mora em mim. Digo que essa menina de 14 anos escreve, e a jornalista de 42 anos revisa.

 

Na última Bienal do Livro de São Paulo, a escritora Marian Keyes, autora de “Melancia”, reclamou do rótulo “chick lit” [algo como “literatura de mulherzinha”] que é dado para os seus livros. Suas histórias também são classificados assim?

Não gosto desse rótulo. Faço livros para quem gosta de se divertir. Por que as meninas leem a vida inteira obras como “Menino Maluquinho”, “Marcelo Marmelo Martelo” e “Harry Potter”, mas não têm nenhum preconceito? Ninguém diz que o Ziraldo só faz livros para meninos. Mas adoram dizer que os meus são para garotas. É um machismo de berço, que faz meninos dificilmente passarem a barreira da capa. Só que, quando isso acontece, eles amam a história.

Espero sinceramente que essa barreira de gênero seja quebrada. Na verdade, acho que já está sendo. Da mesma forma que vi a galera começar a tomar gosto pela leitura, espero viver para acompanhar esse rótulo de “literatura de menina” desaparecer.

 

“Confissões de um Garoto Tímido, Nerd e (Ligeiramente) Apaixonado”

Autora Thalita Rebouças

Editora Arqueiro

Preço R$ 34,90 (2017; 304 págs.)

Leitor avançado

 


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‘Literatura indígena é sempre militante’, diz Daniel Munduruku; leia entrevista https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/03/06/literatura-indigena-e-sempre-militante-diz-daniel-munduruku-leia-entrevista/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/03/06/literatura-indigena-e-sempre-militante-diz-daniel-munduruku-leia-entrevista/#respond Mon, 06 Mar 2017 17:13:46 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2017/03/FotorCreated-180x70.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=1231 Daniel Munduruku gosta de dizer que pegou gosto pela leitura por causa de uma aranha. Ainda criança, uma de suas obrigações era organizar a biblioteca de sua escola. Só que não importava o quanto ele limpasse: uma aranha todos os dias fazia uma teia na mesma prateleira, sobre o mesmo livro. Era só abrir a biblioteca e lá estava a trama pegajosa. Até que o garoto, intrigado, resolveu dar uma olhada na obra de que o inseto tanto gostava. E foi então que leu pela primeira vez “O Pequeno Príncipe”.

De lá para cá, Munduruku não se tornou apenas um leitor –virou também um escritor que, neste ano, completa 20 anos de carreira com diversos prêmios, entre eles o Jabuti e o da Academia Brasileira de Letras. Suas histórias para crianças e adolescentes giram em torno da temática indígena, e não apenas sobre os mundurucus, povo ao qual o autor pertence, mas sobre diferentes culturas e aldeias que existem no Brasil.

O último livro a ser lançado foi “Vozes Ancestrais”, da editora FTD. Nele, o autor reúne dez contos indígenas de dez povos diferentes, dos umutinas aos tabajaras. Ao contrário de grande parte dos título infantojuvenis, ele não traz ilustrações: é composto por fotografias em preto e branco de cada um desses povos brasileiros.

“Vozes Ancestrais” foi um dos 120 livros selecionados pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) para compor o catálogo brasileiro da Feira de Bolonha, um dos mais importantes encontros de literatura infantojuvenil no mundo, que acontece de 3 a 6 de abril na cidade italiana.

Leia abaixo entrevista com o escritor.

 

*

NOME Daniel Munduruku // IDADE 53 anos // LIVROS RECOMENDADOS “Vozes Ancestrais”, “Histórias de Índio”, “Um Dia na Aldeia” e “Foi Vovó que Disse”

FOLHA – O livro “Vozes Ancestrais” demorou mais que o previsto para sair?

Daniel Munduruku – Começamos a prepará-lo cinco anos atrás, com um projeto ambicioso. A ideia era convidar cerca de 20 narradores indígenas, sendo que cada um contaria uma história tradicional de seu povo em português e em sua própria língua. Mas ficou muito difícil de concretizar. Primeiro por causa da distância geográfica entre esses contadores. Depois porque muitas das pessoas que pensamos em convidar não tinham proximidade com a escrita. Seria necessário gravar e transcrever cada uma das histórias. Um trabalho hercúleo.

Além disso, tivemos uma série de questões sobre a autorização de uso das narrativas. Alguns convidados preferiram não ceder o direito de publicação, porque isso só seria possível após consultar o conselho de suas aldeias. Então fomos obrigados a reduzir a ideia original até chegar a dez histórias, apenas em português, mas que contemplam todas as regiões brasileiras.

 

Assistimos a um crescimento no número de escritores indígenas, principalmente para crianças?

Esse movimento começou há quase 20 anos. Tanto que existe um encontro nacional de escritores indígenas, que neste ano chega a sua 14º edição. Como sempre tivemos apoio da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), é natural que a maior parte desses autores passasse a se dedicar a escrever histórias para crianças e adolescentes.

Mas claro que isso vem ganhando uma proporção grande, até inesperada. Atualmente temos cerca de 35 autores indígenas que escrevem para o mercado editorial nacional –o que representa cerca de 150 títulos. Isso sem falar nos que publicam para o povo ao qual pertencem. São obras mais didáticas, que muitas vezes nem são traduzidas para o português.

Além disso, alguns editais do governo foram lançados nos últimos anos [para compras de livros infantojuvenis com temática indígena], o que, de certa maneira, contribuiu para difundir a nossa literatura. Foi criada no mercado toda uma demanda que deu preferência por títulos feitos pelos próprios indígenas.

 

Um desses editais foi o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação) de 2015, que previa a compra governamental de livros com temática indígena e cujo resultado nunca saiu. Houve um excesso de livros lançados pelas editoras nessa época?

Nem todos os livros lançados por indígenas são bons, obviamente. Muitos dos que foram feitos na pressa para serem inscritos nos editais acabaram tendo pouca qualidade literária e editorial.

Mas o fato é que esse movimento cresceu e continua crescendo. Mesmo com todas essas notícias não muito boas vindas do Planalto. Hoje vemos uma paralisia em torno dos editais, o que deixa muitas editoras em maus lençóis.

Só que nós não publicamos livros para vender. Nossa preocupação é ajudar a sociedade brasileira a pensar melhor sobre as questões indígenas e fazê-la conhecer as suas populações. Por isso também que os autores têm preferência pela literatura infantojuvenil, pois o melhor lugar para essa mudança de mentalidade é a escola. É ali que a gente consegue transformar o olhar.

 

Ainda há uma visão estereotipada dos povos indígenas na educação?

Na educação tudo é muito lento. Mas a sala de aula vem mudando a sua abordagem. É algo quase imperceptível, porque a grande mídia e a própria formação do professor acabam jogando contra isso. O educador estudou, na maioria das vezes, em bases pedagógicas antigas, que reproduzem o estereótipo e o preconceito. Esse é o grande nó, o grande gargalo dessa questão.

 

Esse gargalo é igual em escolas públicas e particulares?

O grande desafio de mudança de mentalidade está nos colégios públicos. Porque os particulares, a gente goste ou não, acabam se instrumentalizando muito mais para trabalhar essa e outras temáticas. Eles têm mais capacidade de formação para preparar seus educadores. Isso gera uma mudança considerável de postura.

Mas digo em linhas gerais. Há muitas escolas do governo comprometidas, com professores extremamente empenhados em fornecer aos alunos uma visão crítica sobre os indígenas, longe do estereótipo. Isso só reforça o papel da literatura nessa mudança do olhar.

 

E como desatar o nó dessa questão?

Uma das maneiras que se encontrou foi a lei 11.645/08 [que estipula o ensino sobre culturas afrobrasileira e indígena nas escolas]. Ela coloca o indígena como um ser da contemporaneidade e não como alguém que pertence ao passado. Só que tem gente que se incomoda com isso. A casa grande treme quando vê a senzala. As políticas de afirmação foram fundamentais para as populações indígenas e para a própria literatura, mas há um risco a elas no horizonte.

Um exemplo é esse governo e a sua reforma do ensino médio, que promoveu uma mudança na obrigatoriedade das disciplinas que tratam da temática indígena em sala de aula, como história, filosofia e sociologia –ou seja, as interfaces desse debate. Meu temor é que a gente dê um ou dois passos para trás. Eu não me surpreenderia nem mesmo que a lei fosse derrubada.

 

De um ponto de vista mais amplo, como vê a questão indígena sendo tratada pelo governo de Michel Temer? Houve a troca no comando na Funai, por exemplo.

Olha, não me surpreendo com nada. Esse governo faz todo tipo de retrocesso e anda para trás. Por pouco eles não nomearam um militar para presidir a Funai. Para amenizar, indicaram um pastor. Estamos entregues às raposas. Na verdade, a própria Funai já deu o que tinha que dar. Se ela não pode ser entregue nas mãos dos indígenas, é uma instituição que não tem sentido.

Daqui a pouco, o governo vai discutir a exploração mineral dentro das demarcações indígenas, leis de produção agrícola dentro de áreas de conservação e aí por diante. Eles vão fazer o mesmo que faziam os bandeirantes: caçar índio.

 

Qual o papel do escritor indígena nesse cenário? É o de militante?

A literatura por definição não tem que ter papel nenhum. Ela é uma manifestação criativa. Mas acho que, especificamente, a literatura indígena é sempre militante sim. O que eu faço é militância. Os livros mostram a nossa realidade, mantêm um caráter de denúncia e uma postura política aguerrida. Estamos falando de povos que sofrem há 500 anos.

Mas é bom lembrar que escrevemos para crianças e jovens. Precisamos sempre dosar as palavras para não criar no leitor uma postura defensiva ou agressiva em relação à sociedade brasileira.

 

Parece que há uma preocupação maior sua em escrever para adolescentes.

Eu venho pensando em me comunicar cada vez mais com a juventude. Porque aquelas crianças que leram meus primeiros livros são adolescentes ou até adultos hoje. De alguma maneira, eles precisam ter esse conteúdo renovado de uma forma mais madura e reflexiva.

 

“Vozes Ancestrais”

Autor Daniel Munduruku

Editora FTD

Preço R$ 46 (2016; 80 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 


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‘Poesia para crianças não tem que ensinar nada’, diz Eucanaã Ferraz; leia entrevista https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/01/13/poesia-para-criancas-nao-tem-que-ensinar-nada-diz-eucanaa-ferraz-leia-entrevista/ https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/2017/01/13/poesia-para-criancas-nao-tem-que-ensinar-nada-diz-eucanaa-ferraz-leia-entrevista/#respond Fri, 13 Jan 2017 13:01:45 +0000 https://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/files/2017/01/euca3-180x76.jpg http://eraoutravez.blogfolha.uol.com.br/?p=1000 Quanta poesia cabe num martelo? E num cotonete, num ovo, num simples grampo de cabelo?

Muita, se depender do escritor Eucanaã Ferraz, que lançou no fim de 2016 “Cada Coisa”, pela Companhia das Letrinhas. A obra é um almanaque com poemas sobre objetos do dia a dia, organizados em ordem alfabética. “É um pequeno museu para as crianças entrarem em contato com um mundo passado”, diz.

De fato, não fazem parte da obra computadores, celulares, videogames e outros gadgets e ferramentas tecnológicas. No livros, eles dão lugar à moringa, ao fósforo, ao alfinete.

O ar retrô é ressaltado pelas ilustrações, feitas pelo próprio autor e pelo designer Raul Loureiro. As imagens são criadas principalmente a partir de colagens e de ilustrações que fazem renascer o século 20, como se estivessem em uma cartilha dos anos 1940 ou em um cartaz de vendinha perdida no tempo.

Leia abaixo entrevista com Eucanaã Ferraz sobre o livro e sobre poesia para crianças.

 

*

 

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NOME Eucanaã Ferraz // IDADE 55 // LIVROS INFANTIS RECOMENDADOS “Cada Coisa”, “Palhaço Macaco Passarinho”, “Em Cima Daquela Serra” // LIVRO FAVORITO NA INFÂNCIA Enciclopédia Conhecer (Foto: Bruno Poletti/Folhapress)

O livro que acaba de publicar é um inventário poético de objetos que parecem pertencer ao passado.

O livro é um pouco fora do tempo. Queria que as crianças fossem transportadas a um mundo além das telas, do computador, do celular. Que fosse uma experiência abrangente, de tempo, de forma, de função. Ali você tem clássicos do design: a luminária, a cadeira, a rolleiflex. Não importa que a criança nunca tenha ouvido falar da rolleiflex, nunca tenha escutado bossa nova [a máquina fotográfica é citada na música “Desafinado”] –ela está tendo acesso a esses clássicos, a um mundo de formas e objetos duráveis, perenes. Um universo que é contra aquilo que nasce e morre, que tem vida curta.

 

Que é o DNA do digital, do mundo que elas nasceram.

Exato. No livro, o leitor tem acesso a uma vitrine de objetos que parecem muito antigos. E são mesmo. É um pouco a minha vida. Eu tenho 55 anos. Eles dizem respeito à minha história.

 

A gênese é uma memória da infância?

Surgiu do meu amor pelos objetos, pelas coisas. É um sentimento que existe desde garoto. Sempre gostei de formas, cores, texturas. A imagem vem antes da palavra. Foi então que percebi que queria um livro que fosse um inventário, que parecesse uma enciclopédia. Por isso a ideia de fazê-lo em ordem alfabética, como um grande catálogo da vida moderna. Ou um pequeno museu para as crianças entrarem em contato com um mundo passado.

Hoje tudo é tão rápido. Tenho alunos que nunca ouviram falar de disquete, por exemplo. Mesmo se eu tivesse optado por coisas novas para criar os poemas, logo elas iriam se tornar velhas. Então acabei escolhendo logo os objetos antigos mesmo. Mas que a gente ainda usa, como a borracha, o guarda-chuva, a moringa.

 

Embora sejam coisas, elas trazem muitos sentimentos.

Gosto de partir da coisa para saltar em direção ao sentimento. Os poemas não se limitam à descrição. Em alguns, nem falo diretamente do objeto, na verdade. É o caso do fósforo, que é um poema concreto. Queria que cada texto fornecesse uma experiência diferente. Alguns são mais líricos, outros metrificados, tem verso rimado, alguns mais livres…

 

Poesia para criança tem objetivo, deve ensinar algo?

Não gosto dessa ideia. O livro não tem que mostrar como se comportar, respeitar os mais velhos, escovar os dentes. O poema é uma experiência estética. Ninguém faz isso com os adultos, certo? Os poemas de Drummond não ensinam nada. Os do Bandeira não ensinam nada. São experiências com a palavra e com a forma. Por que então a poesia para crianças precisa ensinar a reciclar o lixo ou a conviver com a diversidade racial? O poema não tem que ensinar nada. O leitor precisa aprender essas coisas em outro lugar.

 

Escrever para crianças é diferente de escrever para adultos?

Quando escrevo para adultos, não escrevo para ninguém. Simplesmente escrevo. Já quando estou fazendo algo para crianças, eu penso na criança. É o único momento em que sei que existe um leitor do outro lado. E isso me exige mais, porque tenho menos liberdade e é preciso ter um cuidado, afinal existem uma série de experiências que pertencem ao mundo do adulto e só. E há outras que são partilháveis. Mas isso não significa facilitar para a criança. Elas precisam ter contato com tristeza, melancolia, desamor, desencontro. Todas as experiências possíveis.

 

‘Cada Coisa’ é um livro só para crianças?

Eu escrevi para a criança. Mas tenho certeza de que ele pode ser lido por adultos também. É censura livre. Os livros para adultos são mais limitados, coitados. Porque eles só servem para quem já cresceu [risos].

Sei que existem poemas ali que parecem muito complicados. Mas, no lançamento, o filho da dona da loja, que deve ter no máximo uns oito anos, me disse que o texto preferido dele é o “Folha em Branco”, que começa assim: “Peço licença para escrever sobre ela”. É um primeiro verso muito austero, sério, difícil. Não é uma brincadeira. E eu perguntei por que era o favorito dele. “Porque na folha em branco nós podemos tudo”. Uma baita resposta! Você se surpreende com as leituras. Mas, se a criança não entender algum poema, isso não tem importância nenhuma. A gente, que é adulto, não entende um monte de poesia por aí também. Faz parte da experiência poética.

 

Faz parte também dessa experiência o contato com diferentes tipos de verso?

A criança não pode ter contato só com poemas rimados e metrificados. Porque depois ela vai ler Drummond, mas ele não é assim. Vai ter contato com Augusto dos Anjos, mas a obra dele é outra coisa. O Haroldo de Campos, então, nem se fala. Aí ela não reconhece como poesia aquilo que está lendo, porque teve uma formação deformada lá atrás.

Poesia é uma linguagem complexa e difícil. Esse leitor precisa ser alguém inteligente, sensível, com tempo e disponibilidade. Não é para ler enquanto joga videogame.

 

Então é para poucas crianças?

Pode-se dizer que sim. Assim como é para poucos adultos. A poesia exige silêncio.

 

Há crianças hoje com esse perfil?

Muitas. Na verdade, é mais surpreendente que existam adultos com essa disponibilidade. E eles existem. As crianças, então, ainda mais.

 

Existe uma má vontade das pessoas com a literatura infantojuvenil, como se ela fosse algo menor?

Os livros infantis deveriam ter a mesma atenção crítica que os textos para adultos. Mas isso não acontece. A sensação é que são obras menores mesmo –o que estão longe de ser, na verdade.

Mas isso dá uma liberdade gigante para o escritor. Porque, quando você escreve um livro para adultos, todo mundo espera uma obra que, no mínimo, mude o rumo da poesia universal. Qualquer livrinho de dez poemas deve mudar os pilares da poesia contemporânea –se isso não acontece, você não fez nada que preste. Para crianças isso não é verdade, ninguém exige nada. Há pouca crítica especializada. Então, você fez um livro e pronto. E isso é maravilhoso.

 

Você é consumidor de livros infantis, acompanha o mercado?

Muito. Compro principalmente quando viajo: se estou na França, em Portugal, na Argentina (que tem uma cena editorial interessantíssima). Gosto desses livros muito por causa das ilustrações também. Elas são um dos motivos para eu fazer os meus infantis.

 

*

 

“Cada Coisa”euca

Autor Eucanaã Ferraz

Ilustradores Raul Loureiro e Eucanaã Ferraz

Editora Companhia das Letrinhas

Preço R$ 49,90 (2016, 128 págs.)

Leitor intermediário + leitura compartilhada

 


 

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